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[DICA DE ESCRITA] Como pontuar diálogos



[DICA DE ESCRITA] Como pontuar diálogos

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Oi, gente! Aqui é a Jana.

No livro Como escrever diálogos: A arte de desenvolver o diálogo no romance e no conto (Editora Gutenberg), Silvia Adela Kohan diz que o bom diálogo é uma forma narrativa das mais convincentes, uma estratégia literária que aproxima o leitor dos personagens por ser uma maneira de apresentar suas falas sem intermediário aparente.

Dependendo do tipo de discurso escolhido, a formatação adequada do texto se torna importante pra garantir a clareza do enunciado. Apesar de ser um recurso presente na grande maioria das obras de prosa de ficção, minha breve experiência com textos de autores iniciantes — em especial durante a análise do material enviado para o primeiro processo de seleção da Revista Mafagafo, da qual sou editora — mostra que pontuar e formatar corretamente os diálogos ainda é uma dificuldade comum.

Por isso, resolvi compilar todas as questões importantes sobre o tema, incluindo exemplos. A ideia é que esse texto seja um guia prático pra consulta em caso de dúvida, mas também achei importante tocar nos aspectos mais teóricos da questão. Pra facilitar a consulta desse texto de acordo com a sua necessidade, os tópicos abordados estão divididos segundo o sumário com links abaixo:

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1) DEFINIÇÕES E REGRAS GERAIS
1.1 Verbos de elocução (dicendi ou sentiendi)
1.2 Tipos de discurso
1.3 Quebra de parágrafos
1.4 Posição dos sujeitos (pronomes pessoais ou substantivos)
1.5 Escolha de travessão, aspas ou diálogo sem sinalização tipográfica

2) USANDO O TRAVESSÃO PARA SINALIZAR O DIÁLOGO
2.1 Hífen, traço médio e travessão
2.2 Como pontuar diálogo seguido de trecho narrativo com verbo dicendi/sentiendi
2.3 Como pontuar diálogo seguido de trecho narrativo comum
2.4 Como pontuar diálogo precedido por trecho narrativo terminado em verbo dicendi/sentiendi
2.5 Como pontuar uma fala dividida em múltiplos parágrafos
2.6 Como pontuar diálogo dentro de diálogo

3) USANDO ASPAS PARA SINALIZAR O DIÁLOGO
3.1 Posição das aspas
3.2 Como pontuar diálogo seguido de trecho narrativo com verbo dicendi/sentiendi
3.3 Como pontuar diálogo seguido de trecho narrativo comum
3.4 Como pontuar diálogo precedido por trecho narrativo terminado em verbo dicendi/sentiendi
3.5 Como pontuar uma fala dividida em múltiplos parágrafos
3.6 Pensamentos
3.7 Diferença entre a pontuação de diálogos no inglês e no português brasileiro

4) AGRADECIMENTOS E REFERÊNCIAS

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Os exemplos apresentados ao longo desse texto foram extraídos dos livros:

As marcações especiais (negrito e sublinhado) nos textos usados como exemplos foram feitos apenas para destacar o que foi explicado — e, portanto, não estão presentes no texto original.

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1) DEFINIÇÕES E REGRAS GERAIS
Antes de falar sobre as regras de pontuação do diálogo, que dependem do estilo de pontuação escolhido pelo autor, editor ou tradutor de um texto — uso de travessão ou aspas —, achei válido introduzir algumas definições presente nestas regras e apresentar também regras que possuem aplicação geral.

1.1 Verbos de elocução (dicendi ou sentiendi)
Segundo Othom M. Garcia, autor de Comunicação em Prosa Moderna (Editora FGV), verbos dicendi são aqueles verbos de elocução que indicam qual interlocutor está com a palavra. Em outras palavras, são os verbos que explicam um ato oral, como dizer, perguntar, responder, retrucar, continuar, finalizar, concordar e exclamar, entre outros. Verbos sentiendi, por sua vez, são aqueles que exprimem emoções, estados de espírito ou reações psicológicas do personagem, como por exemplo balbuciar, berrar, gaguejar, gemer, suspirar ou lamentar.

1.2 Tipos de discurso
Em sua Moderna Gramática Portuguesa (Editora Nova Fronteira), Evanildo Bechara apresenta os discursos direto, indireto e indireto livre em função da maneira com que os verbos dicendi e sentiendi são inseridos nas orações. O discurso direto é aquele em que o autor reproduz as palavras do interlocutor com ajuda explícita ou não dos verbos dicendi e sentiendi.

EXEMPLO DE DISCURSO DIRETO COM USO DE VERBOS DICENDI OU SENTIENDI — Você veio andando o caminho todo de Kaniere até aqui? — perguntou Clinch. Certamente não havia caminhado quatro milhas, não quando ela mal conseguia manter a cabeça erguida! Não quando ela mal conseguia parar em pé! Ela cantarolou novamente, quebrando a melodia em duas partes, para indicar uma resposta negativa. — Como veio, então? — disse Clinch. — Dick estava passando por perto — balbuciou ela. (Os Luminares, página 271)

O discurso indireto é aquele em que, segundo Bechara, “os verbos dicendi se inserem na oração principal de uma oração complexa tendo por subordinada as porções do enunciado que reproduzem as palavras próprias ou do nosso interlocutor. Introduzem-se pelo transpositor que, pela dubitativa se e pelos pronomes e advérbios de natureza pronominal” (página 482).

EXEMPLO DE DISCURSO INDIRETO Explicou que ele cuidara de Anna quando ela fora solta do cárcere duas semanas antes, e desde então tentara granjear sua amizade. (Os Luminares, página 356)

Por fim, o discurso indireto livre introduz a fala do personagem sem nenhum elo com os verbos dicendi, e tem a particularidade de poder manter as interrogações e exclamações da oração originária.

EXEMPLO DE DISCURSO INDIRETO LIVRE Essa quantia deveria ser paga à sra. Wells assim que a fortuna estivesse desimpedida pelo Banco Central, e em qualquer moeda que a viúva desejasse. A sra. Wells tinha alguma coisa a objetar? Não, não tinha — mas ela deu a Aubert Gascoigne um sorriso muito amplo ao se retirar do tribunal, e ele viu que os olhos dela estavam brilhando. (Os Luminares, página 594)

1.3 Quebra de Parágrafo
Independente do estilo de pontuação escolhido, toda troca de turno conversacional — ou seja, toda alternância de locutor — deve ser marcada pela mudança de parágrafo. É recomendado manter a fala de um mesmo personagem em um só parágrafo, mas exceções podem ser abertas em caso de 1) falas interrompidas por trechos narrativos ou 2) falas muito extensas.  No primeiro caso, o parágrafo pode ser quebrado e, depois do trecho narrativo, pode ser retomado com alguma indicação de continuidade como continuou, prosseguiu ou retomou.

EXEMPLO DE FALA INTERROMPIDA POR TRECHO NARRATIVO — Lydia Wells — começou Lauderback — é a dona de um estabelecimento em Dunedin cujo nome eu preferiria dizer somente uma vez, se não se importar. O lugar se chama A Casa dos Muitos Desejos. Um nome infeliz, realmente. Suponho que você já tenha ouvido falar desse lugar. Balfour assentiu, mas discretamente, de modo a não implicar nem familiaridade nem total ignorância. O estabelecimento ao qual Lauderback se referia era uma casa de jogos da mais baixa estirpe, famosa por suas altas apostas e por suas dançarinas. — Lydia era… uma velha conhecida minha nesse lugar — continuou Lauderback. — Não envolvia dinheiro. Não houve transação financeira, entenda-me bem. Entenda-me, porque é a verdade. — Ele tentou encarar Balfour, mas os olhos do agente portuário estavam baixos. — Enfim — disse Lauderback depois de um instante — sempre que eu ia a Dunedin, eu a visitava. (Os Luminares, página 80)

O segundo caso será abordado nos itens 2.5 e 3.5

1.4 Posição dos sujeitos (pronomes pessoais ou substantivos)
A posição dos sujeitos (pronomes pessoais ou substantivos) é uma questão de escolha do autor, tradutor ou editor do texto: o pronome pode aparecer antes do verbo, depois do verbo ou pode até ser suprimido, caso o interlocutor já tenha sido apresentado antes.

EXEMPLO DE SUJEITO ANTES DO VERBO “Esqueceu seu bom humor com as rosas?”, ela comentou, dando uma baforada. (Exorcismos, Amores e uma Dose de Blues, página 82)

EXEMPLO DE SUJEITO DEPOIS DO VERBO “Ora ora, que surpresa”, disse o guitarrista, olhando-o de cima a baixo. (Exorcismos, Amores e uma Dose de Blues, página 117)

EXEMPLO DE SUJEITO OCULTO Liz se sentou na borda, mirou-o por sobre os ombros e voltou sua atenção para Tiago. “Chegou a hora de implorar pelo meu amor”, falou, citando a letra de sua música, para logo em seguida abrir as pernas. (Exorcismos, Amores e uma Dose de Blues, página 148)

1.5 Escolha de travessão, aspas ou diálogo sem sinalização tipográfica
Esta também é uma questão de escolha do autor, tradutor ou editor do texto. Porém, a tradição tipográfica brasileira propõe o uso do travessão, sistema de diálogo que é definido como padrão nos manuais de redação e guias de estilo da maior parte das maiores editoras do país (isso se aplica, em geral, a todas as línguas latinas). Em O Livro: manual de preparação e revisão, Ildete Oliveira Pinto diz que as aspas ficam restritas a dois casos: para realçar a fala que não segue uma réplica ou para assinalar um discurso direto dentro de outro discurso indireto.

EXEMPLO DE FALA QUE NÃO SEGUE UMA RÉPLICA Mas Balfour não estava particularmente certo disso, tampouco se sentia inclinado a estar. Ele protestou e, após uma breve negociação, Lauderback concordou em deixar de fora o nome de Nilssen, “embora eu não deva poupar George Shepard da mesma cortesia”, acrescentou ele, e riu novamente. (Os Luminares, página 594)

O segundo caso será abordado no item 2.6.

Outra possibilidade é não utilizar sinalização tipográfica alguma para demarcar os diálogos. Nesse caso, estes são introduzidos no meio da prosa sem demarcação alguma ou seguindo os padrões de pontuação de diálogos que utilizam as aspas, conforme itens 3.2, 3.3 e 3.4. Os diálogos inclusos no meio do discurso livre indireto também não são demarcados, conforme mostrado no item 1.2.

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2) USANDO O TRAVESSÃO PARA SINALIZAR O DIÁLOGO

2.1 Hífen, traço médio e travessão
A primeira coisa a se notar no caso da escolha desse padrão tipográfico é o uso do sinal correto para indicar os diálogos. O hífen, a meia-risca e o travessão costumam ser frequentemente confundidos entre si, mas como o Rodrigo van Kampen fala nesse texto, “existe um motivo pra sinais gráficos existirem” e é essencial utilizar cada sinal em sua devida aplicação. Veja a diferença entre os três sinais:

Hífen ou traço de união: –

Traço médio ou traço de divisão: –

Travessão: —

O hífen é usado para ligar duas palavras, como em bem-vindo, e apresenta uma tecla direta no teclado com padrão brasileiro. A meia-risca pode ser usada para ligar valores extremos de uma série, como em 0–10, e geralmente pode ser inserido através de atalhos no processador de texto (no Microsoft Word, o atalho é Alt + 0150). O travessão também pode ser inserido por um atalho (Alt + 0151 no Microsoft Word) e, além de ser utilizado para indicar mudança de interlocutor na transcrição de um diálogo, também pode substituir vírgulas, parênteses e colchetes para isolar palavras ou frases em um contexto ou ainda destacar enfaticamente o fim de um enunciado, conforme explicam Celso Cunha e Lindley Cintra na Nova gramática do português contemporâneo.

EXEMPLO DE USO DO DUPLO TRAVESSÃO EM SUBSTITUIÇÃO ÀS VÍRGULAS PARA ISOLAR UM APOSTO O fornecedor de Pritchard para todos os tipos de opiáceos era um homem chamado Francis Carver. Ele agora refletia. O homem era um ex-presidiário, que em consequência disso tinha má reputação; com Pritchard, no entanto, ele sempre fora cortês e justo, e Pritchard não tinha razões para pensar que Carver pudesse querer a ele — ou a seus negócios — qualquer tipo de mal. (Os Luminares, página 183)

EXEMPLO DE USO DO TRAVESSÃO PARA DESTACAR ENFATICAMENTE O FIM DE UM ENUNCIADO E ele havia sido casado. Agathe Gascoigne — Agathe Prideaux, como a conhecera antes. (Os Luminares, página 263)

Eventualmente, manuais de redação e guias de estilo padronizam o traço médio (Alt + 0150) como sinal de transcrição de diálogos, mas o hífen jamais é utilizado nessas circunstâncias.

Alguns processadores de texto substituem automaticamente o hífen duplo (–) por travessão. De qualquer maneira, se o autor não quiser utilizar os atalhos ao longo da escrita pra inserir travessões ou o traços-médios no texto, o uso do hífen duplo é indicado pois, posteriormente, é possível substituir todos os hifens duplos pelo sinal gráfico de escolha. Isso é impossível no caso do uso do hífen simples pra demarcação de diálogos, já que nesse caso a substituição automática também substituiria os hifens aplicados corretamente, transformando, por exemplo, bem-vindo em bem—vindo, uso inadequado do travessão.

2.2 Como pontuar diálogo seguido de trecho narrativo com verbo dicendi/sentiendi
No caso de diálogo seguido de trecho narrativo com verbo dicendi ou sentiendi, o diálogo não deve ser pontuado com ponto final e o trecho narrativo subsequente deve sempre começar com letra minúscula, mesmo quando o diálogo termina com ponto de exclamação, ponto de interrogação ou reticências, pois se entende a parte dialógica e a parte narrativa juntas compõem uma única frase.

EXEMPLO DE DIÁLOGO SEM PONTUAÇÃO SEGUIDO DE TRECHO NARRATIVO COM VERBO DICENDI ou SENTIENDI — Sim, senhor — respondeu Albert do escritório externo. (Os Luminares, página 162)

EXEMPLO DE DIÁLOGO TERMINADO EM PONTO DE EXCLAMAÇÃO SEGUIDO DE TRECHO NARRATIVO COM VERBO DICENDI ou SENTIENDI — Ai de mim! — disse Shepard. — São apenas meus para que os vigie. (Os Luminares, página 263)

EXEMPLO DE DIÁLOGO TERMINADO EM PONTO DE INTERROGAÇÃO SEGUIDO DE TRECHO NARRATIVO COM VERBO DICENDI ou SENTIENDI — Você não sabe? — disse Gascoigne. (Os Luminares, página 241)

EXEMPLO DE DIÁLOGO TERMINADO EM RETICÊNCIAS SEGUIDO DE TRECHO NARRATIVO COM VERBO DICENDI ou SENTIENDI — Bem... — disse Balfour novamente. — Talvez devêssemos ser otimistas. (Os Luminares, página 92)

Uma linha de diálogo pode ser interrompida no meio por uma oração contendo um verbo dicendi ou sentiendi. Se entre o primeiro e segundo elemento desta uma fala houver uma vírgula, ela é colocada após o segundo travessão. Em ambos os casos, a oração intercalada contendo o verbo dicendi ou sentiendi não é pontuada.

EXEMPLO DE DIÁLOGO INTERROMPIDO POR UM TRECHO NARRATIVO COM VERBO DICENDI ou SENTIENDI — Eu lhe concederei o empréstimo e os meus serviços comissionados — disse ele enfim. Sua voz era baixa. Ele empurrou à sua frente as plantas do arquiteto. — Por favor, espere só um momento — acrescentou ele — enquanto registro os materiais de que precisa. (Os Luminares, página 92)

EXEMPLO DE DIÁLOGO COM VÍRGULA INTERROMPIDO POR UM TRECHO NARRATIVO COM VERBO DICENDI ou SENTIENDI — Senhor Gascoigne — disse Moody, levantando a mão —, apesar de minha juventude, possuo certo acúmulo de sabedoria sobre o sexo frágil e posso lhe dizer categoricamente que as mulheres não gostam quando as outras mulheres usam suas roupas sem lhes pedir autorização. (Os Luminares, página 416)

2.3 Como pontuar diálogo seguido de trecho narrativo comum
No caso de diálogo seguido de trecho narrativo comum, sem um verbo dicendi ou sentiendi, o diálogo deve ser pontuado (com ponto final, interrogação, exclamação ou reticências) e o trecho narrativo deve ser, necessariamente, iniciado com caixa alta.

EXEMPLO DE DIÁLOGO SEM PONTUAÇÃO ESPECIAL SEGUIDO DE TRECHO NARRATIVO COMUM — Para sua nova paróquia — disse Balfour ignorando-o. — Estão realizando um enforcamento. — Ele pôs o chapéu, empurrou-o da resta para trás com o polegar e virou-se para sair. Na porta, demorou-se. — Eu não sei o seu nome, reverendo — disse ele. (Os Luminares, página 162)

EXEMPLO DE DIÁLOGO TERMINADO EM PONTO DE EXCLAMAÇÃO SEGUIDO DE TRECHO NARRATIVO COMUMLO DE DIÁLOGO SEM PONTUAÇÃO ESPECIAL SEGUIDO DE TRECHO NARRATIVO COMUM — Ora! — Ela levantou-se um pouco mais no canapé. — Então eu canalizei o fantasma de um homem chinês! (Os Luminares, página 543)

EXEMPLO DE DIÁLOGO TERMINADO EM PONTO DE INTERROGAÇÃO SEGUIDO DE TRECHO NARRATIVO COMUM — E que confusão toda é essa? — Ela gesticulou fracamente em direção à mesa chamuscada e aos destroços do fogo. (Os Luminares, página 543)

EXEMPLO DE DIÁLOGO TERMINADO EM RETICÊNCIAS SEGUIDO DE TRECHO NARRATIVO COM VERBO COMUM — Sei que isso soa muito esquisito — disse ele —, mas não estou totalmente certo de que o homem dentro do caixote de transportes estivesse mesmo vivo. Devido à luz que havia no porão, e às sombras… — Ele vacilou, e então disse, em voz mais áspera: — Deixe-me dizer uma coisa. Eu não estou certo nem de poder chamar aquilo de homem. (Os Luminares, página 378)

Em alguns desses casos, o trecho narrativo comum pode vir em um novo parágrafo ao invés de vir diretamente depois do diálogo, com uso do travessão.

EXEMPLO DE DIÁLOGO SEGUIDO DE TRECHO NARRATIVO COM VERBO COMUM — Sim, como um ator. Ah Quee estudou-o. (Os Luminares, página 486)

2.4 Como pontuar diálogo precedido por trecho narrativo terminado em verbo dicendi/sentiendi
No caso de diálogo precedido por trecho narrativo terminado em verbo dicendi ou sentiendi, este trecho deve ser terminado com dois pontos. Se o trecho terminado em verbo dicendi ou sentiendi for um parágrafo não iniciado em diálogo, depois dos dois pontos pode ou não haver uma quebra de parágrafo para introdução do diálogo.

EXEMPLO DE DIÁLOGO PRECEDIDO POR TRECHO NARRATIVO TERMINADO EM VERBO DICENDI ou SENTIENDI Finalmente Balfour adentrou e fechou a porta. Löwenthal voltou a seu lugar e juntou as mãos. Ele disse: — Por muito tempo pensei que, para os judeus, o negócio de jornais fosse a ocupação perfeita. Sem edições aos domingos, veja só, de modo que combina perfeitamente com o sabá. Tenho pena de meus concorrentes cristãos. Eles devem passar os domingos montando os tipos e espalhando tinta, preparando-se para a segunda-feira; não têm descanso. Enquanto você vinha até aqui, era nisso que eu pensava. Sim, pendure sua sobrecasaca. Por favor, sente-se. (Os Luminares, página 211)

Caso o trecho seja uma interpolação do narrador, não há quebra de parágrafo.

EXEMPLO DE DIÁLOGO PRECEDIDO POR TRECHO NARRATIVO TERMINADO EM VERBO DICENDI ou SENTIENDI NA INTERPOLAÇÃO DO NARRADOR — Conversar com você nunca é trabalho — respondeu Löwenthal gentilmente, e em seguida, pela quarta vez, disse: — Mas você precisa entrar logo. (Os Luminares, página 211)

2.5 Como pontuar uma fala dividida em múltiplos parágrafos
Caso seja necessário dividir uma mesma fala em vários parágrafos, possibilidade introduzida no item 1.3, o primeiro parágrafo deve ser iniciado com travessão e todos os parágrafos subsequentes devem começar com abertura de aspas, que só se fecham ao final da fala, isto é, após o último parágrafo.

EXEMPLO DE FALA DIVIDIDA EM MÚLTIPLOS PARÁGRAFOS — Senhor Staines, o seu advogado — disse ele — fez nesta tarde um bom trabalho em construir uma péssima imagem para o senhor Carver. Não obstante seu desempenho, contudo, reside o fato de que uma motivação para infringir a lei não significa uma autorização para infringir a lei: sua má opinião do senhor Carver não lhe dá o direito de determinar o que ele merece ou não merece. “Você primeiramente não testemunhou a agressão à senhorita Wetherell, nem qualquer outra pessoa, ao que me parece, o testemunhou; portanto, não pode saber sem a sombra de uma dúvida se o senhor Carver foi, de fato, o autor dessa agressão, ou até mesmo se ocorreu uma agressão. É evidente que a perda de qualquer criança é uma tragédia, e uma tragédia não poder ser mitigada pela circunstância; mas ao julgar o seu crime, senhor Staines, devemos pôr de lado a trágica natureza do episódio e considerá-lo puramente como uma provocação, e como uma provocação indireta, devo dizer, para que você cometesse os crimes mais premeditados de desfalque e fraude como forma de retaliação. Sim, você teve motivação para antipatizar com o senhor Carver, para se ressentir dele e até mesmo para desprezá-lo; mas sinto que declaro um ponto muito óbvio quando digo que você poderia ter trazido o seu agravo à atenção da polícia de Hokitika e nos ter poupado um grande incômodo. “Sua declaração de culpa lhe dá algum crédito. Também reconheço que você demonstrou grande cortesia e humildade em suas respostas esta manhã. Tudo isto sugere contrição e deferência ao adequado cumprimento da lei. Suas acusações, contudo, mostram uma negligência egoísta de uma obrigação contratual, um temperamento excêntrico e decadente e improbidade administrativa, não somente em relação às suas concessões de mineração, mas também aos seus colegas. Sua má opinião sobre o senhor Carver, por mais justificada que possa ser, levou-o a aplicar a lei com as próprias mãos em mais de uma ocasião, e em respeito a mais de uma questão. À luz disso, considero que lhe fará muito bem abandonar por um tempo sua majestosa filosofia e aprender a andar com sapatos alheios. “O senhor Carver foi acionista da Aurora por nove meses. Ele cumpriu com a obrigação contratual que lhe era devida, e em troca foi mal-recompensado. Emery Staines, por este meio o sentencio a nove meses de servidão, a trabalhos forçados.” (Os Luminares, página 735-736)

2.6 Como pontuar diálogo dentro de diálogo
Para assinalar um discurso direto dentro de outro discurso direto, o segundo diálogo deve ser assinalado com aspas. Nesse caso, caso haja uma oração intercalada com verbo dicendi ou sentiendi, esta oração fica fora das aspas, entre vírgulas ou vírgula e ponto final.

EXEMPLO DE DIÁLOGO DENTRO DE DIÁLOGO — Não — disse o rapaz. — Mas o senhor Pritchard levou consigo uma garrafa inteira de láudano, e um punhado de pólvora, além disso. O homem nativo disse: “Ele precisa de remédios”, eu o ouvi dizer. Mas ele não disse quem precisava deles. E o senhor Pritchard ficava repetindo algo que absolutamente não entendi. (Os Luminares, página 629)

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3) USANDO ASPAS PARA SINALIZAR O DIÁLOGO

3.1 Posição das aspas
Quando o período é iniciado e terminado em aspas, mesmo com uma oração intercalada com verbo dicendi ou sentiendi, a pontuação final — seja reticências, ponto final, de exclamação ou de interrogação — é colocada antes do fechamento das aspas.

EXEMPLO DE PERÍODO INICIADO E TERMINADO EM ASPAS COM PONTO FINAL “Algo parecido.” (Exorcismos, Amores e uma Dose de Blues, página 139)

EXEMPLO DE PERÍODO INICIADO E TERMINADO EM ASPAS COM PONTO DE EXCLAMAÇÃO “Você me expôs!” (Exorcismos, Amores e uma Dose de Blues, página 282)

EXEMPLO DE PERÍODO INICIADO E TERMINADO EM ASPAS COM PONTO DE INTERROGAÇÃO “Já tem um próximo encontro previsto?” (Exorcismos, Amores e uma Dose de Blues, página 139)

EXEMPLO DE PERÍODO INICIADO E TERMINADO EM ASPAS COM RETICÊNCIAS “Se você quiser discutir sua nota com ela...” (Exorcismos, Amores e uma Dose de Blues, página 218)

Caso o início do período não coincida com a abertura das aspas, então a pontuação final deve vir após o fechamento das aspas, independentemente da pontuação que finaliza o diálogo (reticências, ponto final, de exclamação ou de interrogação).

EXEMPLO DE PERÍODO QUE NÃO SE INICIA COM ASPAS Seguiam por uma rua engarrafada, a poucos quarteirões de seu destino, quando ela resolveu perguntar: “Você nunca foi ao Entremundos, não é?”. (Exorcismos, Amores e uma Dose de Blues, página 267)

3.2 Como pontuar diálogo seguido de trecho narrativo com verbo dicendi/sentiendi
De forma análoga ao que acontece com o diálogo iniciado pelo travessão, o diálogo seguido de trecho narrativo com verbo dicendi ou sentiendi não deve ser pontuado com ponto final e o trecho narrativo subsequente deve sempre começar com uma vírgula do lado de fora do primeiro par de aspas seguida de letra minúscula, mesmo quando o diálogo termina com ponto de exclamação, ponto de interrogação ou reticências.

EXEMPLO DE DIÁLOGO SEM PONTUAÇÃO SEGUIDO DE TRECHO NARRATIVO COM VERBO DICENDI OU SENTIENDI “Continue”, disse Jaques. (Exorcismos, Amores e uma Dose de Blues, página 96)

EXEMPLO DE DIÁLOGO TERMINADO EM PONTO DE EXCLAMAÇÃO SEGUIDO DE TRECHO NARRATIVO COM VERBO DICENDI OU SENTIENDI “Mas é o mesmo cheiro de Fabrício!”, ela gritou. “O cheiro que tinha na semana antes de morrer.” (Exorcismos, Amores e uma Dose de Blues, página 94)

EXEMPLO DE DIÁLOGO TERMINADO EM PONTO DE INTERROGAÇÃO SEGUIDO DE TRECHO NARRATIVO COM VERBO DICENDI OU SENTIENDI “E quem lança isso hoje em dia?”, perguntou Jaques. (Exorcismos, Amores e uma Dose de Blues, página 92)

EXEMPLO DE DIÁLOGO TERMINADO EM RETICÊNCIAS SEGUIDO DE TRECHO NARRATIVO COM VERBO DICENDI OU SENTIENDI “É...”, foi o que ele conseguiu dizer, seu coração a mil por hora. (Exorcismos, Amores e uma Dose de Blues, página 154)

3.3 Como pontuar diálogo seguido de trecho narrativo comum
Ainda de forma análoga ao que acontece com o diálogo iniciado pelo travessão, o diálogo seguido de trecho narrativo comum deve ser pontuado (com ponto final, interrogação, exclamação ou reticências) e o trecho narrativo deve ser, necessariamente, iniciado com caixa alta. Nesse caso, não há vírgula entre o diálogo e o trecho narrativo.

EXEMPLO DE DIÁLOGO SEM PONTUAÇÃO ESPECIAL SEGUIDO DE TRECHO NARRATIVO COMUM “Vamos lá, cãozinho, seja obediente.” Ouviu o atacante gritar, mantendo-se firme na dissipação de energia. Quando a poeira dourada se desfez junto com o pesadelo, ele finalmente pôde ver o rosto de seu salvador. (Exorcismos, Amores e uma Dose de Blues, página 165)

EXEMPLO DE DIÁLOGO TERMINADO EM PONTO DE EXCLAMAÇÃO SEGUIDO DE TRECHO NARRATIVO COMUM Tiago cortou a fila por fora, guiado por pontos cintilantes. Sentiu alguém puxá-lo para trás e deu de cara com uma medusa: “Pro final!”, ela gritou. “Fura fila!” Por um momento, não conseguiu desviar os olhos das serpentes que saíam de sua cabeça. Então, ouviu a voz de Jaques. (Exorcismos, Amores e uma Dose de Blues, página 324)

EXEMPLO DE DIÁLOGO TERMINADO EM PONTO DE INTERROGAÇÃO SEGUIDO DE TRECHO NARRATIVO COMUM “Por que me segue, humano?” A voz desafinada do fila ecoou direto na mente do exorcista. (Exorcismos, Amores e uma Dose de Blues, página 164)

EXEMPLO DE DIÁLOGO TERMINADO EM RETICÊNCIAS SEGUIDO DE TRECHO NARRATIVO COM VERBO COMUM “Foi por aqui que...” Ela se virou de costas e sua imagem desapareceu. Sabia o que estava prestes a acontecer. Conhecia a teoria aprendida nos livros. Ainda assim, não conseguia controlar a ansiedade. (Exorcismos, Amores e uma Dose de Blues, página 59)

3.4 Como pontuar diálogo precedido por trecho narrativo terminado em verbo dicendi/sentiendi
No caso de diálogo precedido por trecho narrativo terminado em verbo dicendi ou sentiendi, este trecho deve ser terminado com dois pontos. Se o trecho terminado em verbo dicendi ou sentiendi for um parágrafo não iniciado em diálogo, depois dos dois pontos pode ou não haver uma quebra de parágrafo para introdução do diálogo. Caso o trecho seja uma interpolação do narrador, não há quebra de parágrafo.

EXEMPLO DE DIÁLOGO PRECEDIDO POR TRECHO NARRATIVO TERMINADO EM VERBO DICENDI OU SENTIENDI Vendo que ele não se manifestaria, ela prosseguiu: “Acha que morreram aqui dentro?” (Exorcismos, Amores e uma Dose de Blues, página 74)

EXEMPLO DE DIÁLOGO PRECEDIDO POR TRECHO NARRATIVO TERMINADO EM VERBO DICENDI OU SENTIENDI NA INTERPOLAÇÃO DO NARRADOR “Ei, quer dar uma saída amanhã à noite?” Em resposta à cara de paisagem que recebeu em troca, completou: “Pensa no assunto.” E se enfiou no meio dos fãs. (Exorcismos, Amores e uma Dose de Blues, página 119)

3.5 Como pontuar uma fala dividida em múltiplos parágrafos
Caso seja necessário dividir uma mesma fala em vários parágrafos, possibilidade introduzida no item 1.3, todos os parágrafos (inclusive o primeiro) devem começar com abertura de aspas, que só se fecham ao final do último parágrafo da fala.

3.6 Pensamentos
Em geral, pensamentos devem ser demarcados com aspas ou sem sinal tipográfico algum. No primeiro caso, a pontuação deve seguir as regras de pontuação para diálogos marcados com aspas.

EXEMPLO DE PENSAMENTO MARCADO COM ASPAS (EM UMA OBRA COM USO DE TRAVESSÃO NOS DIÁLOGOS) “Ora”, pensou Frost enquanto ela se sentava, “ela está faminta!” Ele relanceou o olhar para Nilssen, tencionando encontrar os olhos do outro homem, mas Nilssen estava franzindo o cenho a Anna, com uma expressão de solene perplexidade no rosto. Tarde demais, Frost lembrou-se de sua incumbência e voltou-se para a viúva — que, no breve momento em que a cabeça de todos estava voltada para a porta, fizera alguma coisa. Sim: ela fizera alguma coisa, certamente, pois ela alisava o vestido de uma maneira tensa e satisfeita, e sua expressão subitamente se tornara vivaz. O que ela havia feito? O que ela havia adulterado? Sob a tênue luz, ele não conseguiria dizer. Frost maldiçoou-se por haver olhado para o outro lado. Este era justamente o tipo de subterfúgio que Pritchard havia previsto. Ele jurou não desviar o olhar uma segunda vez. (Exorcismos, Amores e uma Dose de Blues, página 119)

3.7 Diferença entre a pontuação de diálogos no inglês e no português brasileiro
Embora a demarcação dos diálogos com aspas seja uma tendência contemporânea, de matriz-anglo-saxã, há diferenças entre a padronização de pontuação de diálogos no inglês e no português brasileiro. Assim sendo, os padrões usados em livros publicados em inglês (ou qualquer outro idioma) não devem ser utilizados como exemplo para pontuação de diálogos escritos em português.

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4) AGRADECIMENTOS E REFERÊNCIAS
Quando comentei nas redes sociais que gostaria de compilar as regras de pontuação de diálogos, fui contatada por muitos amigos e profissionais do mercado literário dispostos a ajudar. Agradeço à Isa Próspero, à Taissa Reis, ao Michel Costa e ao Hugo Maciel de Carvalho pelo compartilhamento de suas experiências e materiais de referência. Agradeço ainda à Regiane Winarski e à Luísa Dentello por oferecerem ajuda, ao Eric Novello por facilitar minha busca por exemplos no livro dele e ao Bruno Matangrano por ser o santo e paciente leitor beta desse texto. Por último, agradeço ao Lee por ter me ajudado na formatação desse post. Qualquer bobagem escrita aqui é culpa minha, e não de nenhum deles. Deixo aqui o link de todos, caso estejam procurando serviços editoriais oferecidos por pessoas muito competentes.

Se você achar algum erro nesse material ou se quiser conversar sobre o assunto, pode deixar um comentário aqui no post ou entrar em contato comigo pelo Twitter ou pelo meu email, janayna.pin@gmail.com. Se você chegou no site por causa desse artigo e ainda não conhece o Curta Ficção, dê uma chance pra esse podcast de literatura que cabe no seu tempo. Quinzenalmente, publicamos episódios de 30 a 50 minutos sobre escrita, literatura e mercado editorial. 🙂

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CONTOS VENCEDORES DO I CONCURSO DE FICÇÃO RELÂMPAGO



Contos Vencedores do I Concurso de Ficção Relâmpago

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VENCEDOR: Fins de Janeiro – Bruno Müller

As batidas do monjolo marcavam o tempo que resistia em passar, naqueles dias modorrentos de janeiro. A velha, sozinha, bordava em sua cadeira, acompanhando os murmúrios  do moinho na água e os baques da madeira nos grãos. Seu casebre, perto de uma das colunas das grandes construções, só não era esquecido naquela imensidão pois ficava na beira da estrada, e muitos batiam à sua porta pedindo ora informação, ora conselhos, ambos servidos com café.

Baque. Ela já havia se acostumado, ainda que fosse por vezes tomada pela tristeza, contagiada pelos que passavam por ali. À noite, as pancadas conduziam o passar das horas, que durante o dia era medido pela luz do sol que refletia nos muitos vidros coloridos, espalhados pela casa.

As pontes impossivelmente altas cruzavam os ares, as longas colunas de suas fundações perfurando a terra e se elevando como enormes espinhas de peixe. Todos os caminhos que cortavam o céu, ignorantes da cabana da velha a seus pés, encontravam-se no topo daquele morro de pedra, lá longe, onde ficava a mais alta das cidades. Suas muralhas cor de cobre, encarapitadas umas sobre as outras, eram da mesma cor dos parapeitos que voavam sobre o vale.

Fora algum ancestral da mulher que, desistindo da vida naquela cidade triste e distante, havia limpado e cercado aquele pedaço de terra. Talvez o mesmo antepassado tenha feito o engenho e o monjolo que estalava, transformando milho em farinha.

Outra pancada. Era aquele som que a mantinha sem medo, mesmo vivendo sozinha, enquanto via as pessoas caminhando lá no alto. Não sabia mais quanto tempo lhe restava, e mesmo tendo saído poucas vezes da sua casinha, não se arrependia da vida que tivera. Era tranquila. Solitária, mas tranquila. Talvez isso ajudasse os que vinham em busca de seu conselho.

Os mercadores e viajantes, que entravam e saíam da cidade, faziam muitos caminhos pelas pontes altas, por escadas que desciam as colunas enormes, por estradas de tijolo e terra que costuravam o vale verde como uma grande colcha. As batidas à porta da velha somavam-se às dos fundos da casa.

Da cidade distante só tinha uma memória ainda mais longínqua, de quando era menina e visitara uma casa de vidros com a mãe. Frascos, vasos de flor cristalinos. A memória era triste, e foi sempre assim que se lembrou daquele lugar e daquelas pessoas.

Naqueles dias de verão era mais comum baterem à sua porta, quase todos os dias. Homens e mulheres, oficiais de alta patente, mães, pais, irmãos e irmãs. Filhos e filhas. Choravam. Ela servia café e os acalentava, iluminada pelos vidros da mãe.

Lá fora, outra batida.

Pela janela de sua cozinha, conseguia ver os telhados vermelhos da cidade, lá longe. As árvores frondosas, com suas folhas e flores cor de sangue, as pétalas carregadas pelo vento até o fundo do vale. Também via uma ou duas pontes, mas não a que fora construída sobre o seu teto. Não o parapeito de onde saltavam para a morte em seu quintal.

MENÇÃO HONROSA: Pequenas Vitórias – Maisa Fonseca

A coisa boa de uma infestação zumbi urbana é que é fácil de lidar. A gente cria um perímetro e monitora com câmeras de trânsito. Evacua, daí é simples: ninguém entra, ninguém sai. Depois a gente observa por uns meses, limpa tudo e devolve pra população.

É um trabalho chato, mas alguém tem que fazer né?

Senta aí antes de assinar, deixa eu te dar um conselho. Não fica monitorando as câmeras. É o pior trabalho. Você vai ter que tomar decisões difíceis.

A coisa fica complicada depois da evacuação, sabe… Quando a galera que ficou… Bom, quando a galera que ficou dá seu jeito.

O vírus é uma merda. Você apodrece antes de perder a consciência. Às vezes temos que matar zumbis extremamente eloquentes, que, nossa senhora, são inclusive pessoas maravilhosas, mas tem que matar, né? Ficou no perímetro, não pode sair.

Eu não devia contar essa história, mas vou contar, aí tu decide se vai alistar. Eu tava nas câmeras, naquela infestação que pegou o rio de Janeiro todo, faz uns cinco anos. Lembra? Tinha um posto de perímetro bem nos Arcos da Lapa.

Lá pelo quadragésimo dia, eu vi um vulto de cabelo comprido e bem esfarrapado, vindo lá das bandas da Central, carregando alguma coisa… Bem podre, não dava nem pra saber o que era, sabe como é?

O vulto veio se embrenhando pelo Centro, arrastando os pés, bem devagar. Zumbi anda devagar por que o músculo não regenera mais, né?

O louco era que esse aí era extremamente esperto. Só andava de manhã cedo e durante a tarde, depois do calor passar… Batia umas oito da noite, o bicho sumia até de manhãzinha.

Me apeguei. Curiosidade, manja? Eu só queria que aquele lá conseguisse descansar em paz, sabe?

Acabou que o bicho veio numa carreira na Mem de Sá, pra cima da gente. O zumbi veio chegando, olhando pra trás as vezes. Devia ter visto algo pior que ele. Algo mais assustador.

À uns vinte metros da barricada, um tiro só. Pum! No ombro. O bicho urrou… Barulho feio, do fundo da cova, aí arrastou o pé. Um outro tiro pegou na cabeça, certinho.

Caiu como uma bailarina. De forma delicada, aquilo se estendeu, colocando a trouxa que ele carregou esse tempo todo pra frente. Ninguém entra, ninguém sai.

horas depois, a trouxa começou a se mexer. Depois começou a chorar. Eu na câmera.

O bicho trouxe um neném, cara. Um neném. O bicho carregou um neném por 3 dias. Pra gente cuidar. O neném novinho, lá, chorando. O chefe disse ‘deixa morrer’. Cabou meu turno, fui dormir e o neném chorando. Naquela altura do campeonato, ninguém entra, ninguém sai. É um trabalho de corno, cara.

Vai se alistar? Que que cê tá olhando na minha mesa, hein? Essa foto? Minha filha. O nome dela é Vitória. Quantos anos ela tem? Quatro. É, quatro anos. Grande ela, né? Todo mundo acha que ela tem cinco anos. Mas ela tem quatro, tá? Ela tem quatro.

MENÇÃO HONROSA: Margarina – Robisom Lima

Juntou as migalhas de sua vida, todas espalhadas sobre o balcão do bar. As chaves de casa, os poucos cigarros amassados, umas moedas, sua dignidade. Da porta olhou para a penumbra do estabelecimento, para dois ou três fregueses em situação de abandono moral. Sentiu simpatia por eles, aquela cumplicidade que só a culpa consegue sustentar.

Lá fora a luz foi uma surpresa terrível. Amanhecera enquanto revisitava suas dúvidas, procurando respostas no fundo dos copos. Tomara algumas cervejas, uma ou outra tequila e uma frágil decisão.

Voltou caminhando, sua casa a umas poucas quadras dali. Tirou as chaves do fundo do bolso e junto com o chaveiro, intrometida, veio a aliança. Um olho dourado, inquisidor, observando sua alma culpada enquanto refletia o brilho da manhã. Encararam-se por uma pequena eternidade. O anel voltou para o bolso.

Entrou com cautela, pé ante pé, ouvindo o silêncio da casa. Jogou os pertences na poltrona, a bolsa, o casaco, as certezas, caminhou em direção a cozinha. Precisava de algo para afogar o desconforto súbito na boca do estomago. Achou que fosse a ressaca, mas eram suas angustias abrindo caminho garganta acima.

Estendeu a mão para a geladeira mas interrompeu o movimento, como se o tempo estancasse a realidade. Na porta de aço escovado um pequeno imã prendia dois fragmentos de realidade. Na foto uma família. Dia de sol, duas jovens mulheres bem-sucedidas, felizes, uma garotinha entre elas. Logo abaixo o bilhete: “Linda, fui levar a Pequena para a escolinha. Vou fazer o bolo, vc traz a margarina? Ass: Sua Loira ♥

No bolso, a mão tremula encontrou a aliança, mas não as certezas todas, jogadas na sala de estar…

MENÇÃO HONROSA: Animal – Leandro Samora

Pousou o trabuco sobre a cadeira, com a ponta de metal escorada na parede da cabana. Fez isso antes de fechar a porta: com a nevasca, precisaria das duas mãos livres para empurrar e depois passar o ferrolho.

Quando o vento finalmente silenciou, deixando para trás apenas um rastro úmido sobre o tapete, foi um alívio, mas também um sinal para maus pensamentos. O escuro repentino.

Tirou as luvas, tateou, achou os fósforos e acendeu o lampião.

Dezenas de pares de olhos mortiços e vidrados o encararam, com o brilho da chama lhes emprestando alguma vida. O homem retirou o chapéu de pele e levou o lampião até a lareira. As sombras se afastavam dele conforme caminhava. O cervo o observava de lado. O urso sucumbia ao peso de suas botas. A raposa aquecia seus ombros.

A cabana estava aquecida com o grande fogo. A garrafa reluziu na prateleira. O líquido se agitou e refletiu na madeira. Rolha fora.

A faca saiu do cinto e repousou ao chão. Depois foi a vez das botas atravessarem a sala e irem bater na cadeira ao lado da porta, derrubando o trabuco com um estrondo. Conforme o volume da garrafa baixava, o calor se espalhava no corpo, do fígado às extremidades. As peles caíam feito a primeira neve, com calma. Pelagens diferentes ao chão. Logo o homem estava nu encarando os olhares que evitava. Presas altivas eternizadas num rugir sem som. Orgulhosos e mortos senhores. O homem desviou o olhar e chorou sua vergonha até adormecer.

Não durou. O uivo o despertou. Estava próximo, muito próximo. A agressividade e o perigo. Levantou-se, trôpego, apanhando as peles. Logo era mais animal que homem novamente. Precisava sobreviver mais uma noite.

Uma mão foi ao trabuco e outra ao ferrolho.


[DICA DE ESCRITA] Como estruturar sua história – Método dos Sete Pontos



[DICA DE ESCRITA] Como estruturar sua história – Método dos Sete Pontos

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Artigo originalmente postado no blog do autor.

Ainda que você escreva sem planejar sua história de antemão, ou se esmiúça os detalhes antes de começar, é inegável a importância de estruturar seu enredo. Muitos o fazem, inclusive, inconscientemente, aplicando técnicas enquanto colocam as ideias no papel. Isso acontece porque estamos acostumados a ler histórias com elementos universais (e.g. heróis, vilões, mentores), e somos condicionados a pensar de uma maneira específica.

É inegável a importância de estruturar seu enredo.

Porém, quem pretende organizar ideias em forma de esboço (o famoso outline), seja para evitar trabalho de reescrita ou para testar conceitos e personagens, pode utilizar diversas técnicas conhecidas para estruturar o enredo.

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A Jornada do Herói. Fonte: Perplexidade Silêncio

Hoje tentarei descrever uma técnica menos popular, mas que tem me ajudado bastante. Ela foi delineada pelo escritor norte-americano Dan Wells e expandida por outros autores. Aqui, dou minha própria interpretação desse método, que se chama…

Método dos Sete Pontos de Enredo

O Método dos Sete Pontos consiste em identificar sete momentos-chave na narrativa. Estes momentos são marcos que farão sua história avançar, além de estabelecer os conflitos que permeiam seus personagens. Eles podem variar desde cenas inteiras, capítulos, diálogos ou até um simples parágrafo.

Os pontos são (nomes adaptados por mim):

  1. Gancho
  2. Chamado
  3. Catalisador
  4. Espelho
  5. Crise
  6. Clímax
  7. Resolução

Antes de começarmos, lembrem-se da única regrinha básica da escrita: não existem regras. O que descrevo a seguir são meramente dicas que me ajudam a organizar as ideias. Não as siga à risca. Modifique-as e ignore-as à vontade. Escrever um bom texto não significa seguir regras, mas saber o que funciona para você.

Sem mais delongas, vamos ao primeiro ponto:

  1. Gancho

O que é o gancho?

O gancho é o estímulo que fará seu leitor pensar: e agora, o que acontece? Ele é o motivo que o fará continuar lendo além das páginas iniciais. O gancho pode ser um(a):

  • reviravolta
  • cena chocante
  • personagem cativante
  • ideia intrigante
  • o que você quiser que ele seja

Qual a função do gancho?

É tão simples quanto parece. O gancho serve para fisgar seu leitor. Para isso, ele precisa ser grande/importante/chocante o suficiente para fazê-lo imaginar o que acontece na próxima página. E na próxima. E na próxima.

Quando o gancho deve aparecer?

O mais rápido possível. Ele pode, inclusive, aparecer na primeira linha, mas é importante que isso aconteça nas primeiras páginas da sua história. Se seu gancho não surgir logo, os leitores podem perder interesse. Se um editor ler sua história, ele certamente irá procurar por algo que fisgue sua atenção nas primeiras páginas. Caso ele(a) não encontre, provavelmente deixará seu manuscrito de lado. Fisgar seu leitor nas primeiras linhas é crucial.

Fisgar seu leitor nas primeiras linhas é crucial.

O que NÃO fazer com o gancho?

O gancho não é necessariamente o acontecimento que conduz sua trama (veremos mais sobre isso depois no Chamado), ele serve apenas para criar interesse na história.

Se sua história é sobre um detetive que investiga um assassinato, seu gancho pode ser a própria cena do crime, um flashback do passado do detetive em que ele vê a mãe ser morta, ou até mesmo uma cena do fim do livro em que ele está à beira da morte, encurralado pelo assassino (mas sem deixar claro ao leitor quem é o crimonoso). Nesse último caso, você voltaria no tempo para contar o início da trama, deixando o leitor ávido por saber como o detetive foi parar naquela situação.

Muitas vezes, o gancho pode vir na forma de um prólogo (ou um Capítulo 1 que tem função de prólogo). Muitos autores e editores não recomendam o uso de prólogo. O que eles realmente querem dizer é: não crie prólogos que confundam seu leitor ou que os mate de tédio. Vamos entender dois tipos de prólogo muito comuns: Prólogo do Monstro de Gelo e Prólogo In Media Res.

Prólogo do Monstro de Gelo

Prólogo do Monstro de Gelo é uma referência ao prólogo do livro Guerra de Tronos, de George R. R. Martin (esse mesmo, que deu origem ao seriado Game of Thrones).

O livro de Martin é enorme, e a magia só aparece realmente depois de centenas de páginas. Para tal, Martin incluiu um prólogo que, logo de cara, mostra um gigante monstro de gelo, usando isso como promessa de que o livro terá magia e criaturas fantásticas mais tarde. Isso torna a leitura dos capítulos seguintes mais instigantes, pois o leitor sabe que, em algum momento do livro, os personagens irão se deparar com perigos sobrenaturais.

Prólogo In Media Res

In Media Res vem do latim no meio das coisas. Essa é uma técnica literária onde a narrativa começa no meio da história, em vez de no início. Isso é usado para (você acertou!) fisgar o leitor.

Para se contar uma história, é preciso explicar, explicar e explicar. Harry Potter é um garoto que vive debaixo da escada… Frodo é um hobbit que vive numa vila pacata… Luke é um jovem que vive isolado com os tios… Normalmente, essas primeiras cenas são monótonas, se você não conhece os personagens envolvidos. Para isso, algumas histórias começam por uma cena empolgante do meio da trama e depois retrocedem ao início, criando, assim, um ar de mistério.

Exemplos de Ganchos

  • Peter Pan: o Gancho (não, não é o Capitão) está logo na primeira frase: Todas as pessoas crescem, menos uma.
    • Quem é essa pessoa que não cresce? Por que não?
  • Senhor dos Anéis: um mago poderoso pede a ajuda de um jovem e pacato hobbit para uma aventura.
    • Que habilidades esse inofensivo hobbit tem a oferecer? Que perigos eles encontrarão no caminho?
  • Réquiem para a Liberdade (livro de minha autoria): Um ex-escravo é capturado por criminosos, e escapa com a ajuda de uma marca hedionda que carrega no peito.
    • Qual o segredo por trás dessa misteriosa marca? Quem fez isso com ele? Como ele foi parar nas mãos desses criminosos?

Ganchos “Prólogo do monstro Gigante”

  • Harry Potter: Dois bruxos abandonam um bebê misterioso na porta de uma casa no meio da noite. (logo de início fica evidente que há magia no mundo)
    • O que há de tão especial nesse bebê? Que poderes esses bruxos possuem?
  • Star Wars: um poderoso vilão mascarado usa habilidades sobrenaturais e captura uma princesa.
    • Quem está por trás da máscara desse vilão? Qual a fonte do seu poder? Quem salvará a princesa?

Ganchos com “Prólogo In Media Res”

  • A Odisseia: Atena manda Telêmaco buscar seu pai Odisseu, que está sumido há dez anos. A história, então, começa a contar o que Odisseu tem feito nesses anos.

 

  1. O Chamado

Agora que você fisgou a atenção do leitor, você pode seguir o curso normal da narrativa. Isso não é desculpa, entretanto, para frustar o leitor. Você ainda terá que manter suspense e/ou conflito. Após o gancho você tem um espaço para respirar e apresentar seus personagens. Porém, cedo ou tarde, você terá que estabelecer o Chamado – é ele quem irá forçar seu(s) protagonista(s) a seguir sua jornada pelo resto da trama.

O que é o chamado?

O chamado é onde se inicia a jornada. É lá que você define as motivações e circunstâncias que farão sua história seguir em frente. Depois do chamado, não há mais volta.

Quando o chamado deve aparecer?

A primeira regra da escrita é que não há regras. O chamado pode acontecer em qualquer momento da narrativa, como pode não acontecer de jeito nenhum. Entretanto, em narrativas modernas de ficção, vemos que o chamado acontece (quando acontece) no começo da trama, de preferência antes de 1/4 da história (se seu livro tem 200 páginas, isso significa ter seu chamado antes da página 50).

Como introduzir o chamado?

Conflito. Sem conflito não há trama. Um chamado nada mais é que uma escolha que o protagonista precisa fazer para iniciar sua jornada. Ninguém quer ler sobre um personagem que passa a história vivendo sua vida pacata, sem surpresas. Sua função, como escritor, é virar a história de cabeça pra baixo, de forma que seu personagem entre em conflito, seja com outro personagem, com a sociedade ou até com ele mesmo.

É nesse momento que sua história se transforma e realmente começa. Tudo que acontece antes do chamado é a base para que a trama se inicie.

Sem conflito não há trama.

Exemplos de Chamado

  • Jogos Vorazes: A irmã mais nova de Katniss é escolhida para participar dos jogos, e Katniss se voluntaria para ir no lugar dela.
  • Senhor dos Anéis: Gandalf conta a Frodo que as forças do mal sabem que ele possui o Um Anel, e que eles devem deixar o Condado imediatamente.
  • Réquiem para a Liberdade: Marko chega à Ravina e confronta o tirano Dom (a partir de agora não exemplificarei mais meu livro, para evitar spoilers).
  • Harry Potter: Harry descobre que é um bruxo e que irá estudar na Escola de Magia de Hogwarts.
  • Star Wars: Luke descobre que seus tios estão mortos e resolve se juntar a Obi-Wan Kenobi.

 

  1. O Catalisador

Agora que passamos pelo Chamado e partimos numa jornada sem volta, precisamos manter nossos personagens sob pressão (a vida de um protagonista não é fácil). Para isso, recorremos a um Catalisador.

O que é o Catalisador?

O Catalisador serve para impulsionar seu personagem a tomar decisões e para demonstrar as terríveis forças contra as quais ele está batalhando. De certa forma, ele serve para acelerar sua história.

Quando o Catalisador deve aparecer?

Em algum ponto entre o Chamado e o Espelho (veremos mais sobre o Espelho a seguir). Logo após o Chamado, seus personagens ainda estão descobrindo sua jornada, fazendo aliados, enfrentando provações e/ou desvendando mistérios. Em algum momento, algo acontecerá para aumentar o senso de urgência e a necessidade de se tomar uma ação. Adicionalmente, sua história pode possuir mais de um catalisador, a seu critério.

Como introduzir o Catalisador?

Novamente, a resposta é: conflito. O Catalisador pode ser o momento perfeito para introduzir um vilão, raptar um aliado, descobrir um esconderijo ou revelar um traidor. O catalisador deve conflitar o seu personagem, forçando ele a reagir e tomar decisões importantes.

Exemplos de Catalisadores

  • O Iluminado: Danny começa a ter alucinações e a perceber atividades sobrenaturais pela primeira vez.
  • Senhor dos Anéis: Frodo e seus companheiros são atacados pelos cavaleiros negros. Frodo é esfaqueado.
  • Harry Potter: Um trasgo ataca Hogwarts.
  • Star Wars: Os stormtroopers atacam a Millennium Falcon enquanto Luke e Ben Kenobi tentam alcançar a Aliança Rebelde.

 

  1. O Espelho

Em questão de estrutura, o Espelho é um dos três acontecimentos principais que conectam sua história (os outros dois sendo o Chamado e o Clímax). São como estacas que sustentam uma tenda. É no Espelho que o seu protagonista irá encontrar sua verdadeira motivação (ou perdê-la), e onde o caminho realmente parece não ter volta (ou não ter futuro). Fazendo uma analogia com o próprio nome, é como se o protagonista se olhasse no espelho e se perguntasse: o que foi que eu fiz?

O que é o Espelho?

O Espelho pode ser o momento em que algo impactante acontece, fazendo seu personagem passar de reativo a ativo, deixando de correr dos problemas e começando a resolvê-los.

No entanto, levar essa definição ao pé da letra pode ser perigoso. Se você mantiver seu protagonista totalmente reativo na primeira metade da história, possivelmente os leitores não irão simpatizar com ele. Esse é uma das grandes críticas, por exemplo, a Harry Potter. Muitos alegam que Harry é um personagem majoritariamente reativo, e que só consegue êxito graças a seus aliados.

Uma forma mais abrangente de pensar no Espelho é como um momento em que o personagem precisa refletir a consequência das ações que tem tomado, e no que ele pode fazer para mudar seu futuro.

Onde vai o Espelho?

Se você chutou “na metade da história”, você acertou. Muitos escritores sofrem por não conseguir deixar o meio da trama interessante, então é essencial ter algo importante que muda o rumo da história, mantendo o leitor interessado até o grand finale.

Uma técnica útil para se usar nesse momento é a de pensar num final e criar uma situação no meio que faça com que aquele final pareça impossível de se alcançar. E então descobrir uma maneira de torná-lo possível. Por exemplo, se seu protagonista precisa alcançar o topo da montanha até o fim da história, exploda a montanha na metade e descubra outra maneira de levá-lo ao objetivo. Isso ajuda a manter o suspense.

É essencial ter algo importante que muda o rumo da história, mantendo o leitor interessado até o grand finale.

Outra vez, a principal regra é que não há regras, então você não precisa obrigatoriamente posicionar seu Espelho na página 100 de seu livro de 200 páginas. A tama irá ditar quando o Espelho acontece.

Exemplos do Espelho

  • 1984: Após descobrir como o Partido manipula a população, Winston decide investigar um misterioso grupo de resistência.
  • Senhor dos Anéis: O conselho se reúne em Rivendell e, após diversos desentendimentos. Frodo decide ele mesmo levar o Um Anel a Mordor.
  • Harry Potter: Harry se olha no Espelho de Ojesed (coincidência?) e decide honrar a morte de seus pais.
  • Star Wars: Luke e seus companheiros são levados à Estrela da Morte, descobrem que Leia está sendo mantida prisioneira e decidem resgatá-la.

 

  1. Crise

Agora que já passamos do Espelho e seu personagem já decidiu o que precisa fazer para resolver seus problemas, está na hora de entrarmos em Crise. Assim como o Catalisador, a Crise aplica pressão em seus personagens e os força a tomar decisões, movendo a história adiante. De fato, da mesma forma que o catalisador impele seus personagens a continuar após o início da jornada, a crise os mantém nos trilhos rumo ao conflito final.

Uma história sem Crises

Se você retira os momentos de crise (e, igualmente, catalisadores) de sua história, o que sobra? Se Frodo não passasse por momentos de perigo no caminho para Mordor, qual seria o propósito da história? Crises são momentos que, além de aumentar o senso de urgência, permitem ao autor demonstrar o perigo que seus personagens sofrem em sua jornada.

Exemplos de Crise

  • Batman Begins: Ra`s Al Ghul queima a mansão Wayne e deixa Bruce à beira da morte.
  • Senhor dos Anéis: Gandalf cai no abismo ao enfrentar o Balrog.
  • Harry Potter: Harry vê Voldemort sugar o sangue de unicórnio e quase é morto.
  • Star Wars: Os stormtroopers atacam os heróis enquanto eles tentam fugir da Estrela da Morte com a princesa Leia.

 

  1. Clímax

O Clímax, como vocês já devem imaginar, é o momento em que tudo se conecta. É o lampejo, inspiração ou aquele último pedaço de informação que seu personagem precisava para derrotar seus inimigos. Tudo que acontece a partir daí leva a história ao seu final.

O Que é o Clímax?

O Clímax costuma ser o confronto final entre heróis e vilões, o bem e o mal, protagonistas e antagonistas. Sua história deve culminar para esse momento. Inclusive, no Clímax, sua história deverá ter grande impacto emocional em seus leitores.

Onde vai o Clímax?

Há uma confusão natural entre o clímax e a resolução de sua história. De fato, estes dois pontos estão iterligados. Um leva ao outro. O clímax começa no momento em que o protagonista tem em suas mãos o poder para “vencer a batalha” e termina quando tudo está prestes a se resolver.

No Clímax, sua história deverá ter grande impacto emocional em seus leitores.

Exemplos de Clímax

  • O Caso dos Dez Negrinhos: Oito já morreram e apenas dois restam. Cada um dos dois sobreviventes sabe que ele próprio não é culpado pelas mortes e os dois se confrontam.
  • Senhor dos Anéis: Boromir tenta roubar o Um Anel de Frodo, fazendo o hobbit perceber o poder do anel em corromper seus companheiros. Ele, então, percebe que terá de enfrentar o desafio sozinho.
  • Harry Potter: Ao se olhar no espelho de Ojesed, percebe que, como seus motivos são puros, ele é o único que pode possuir a pedra filosofal.
  • Star Wars: Luke descobre que tem a Força, e terá que usá-la para destruir a Estrela da Morte.

 

  1. Resolução

Por fim, o fim. Antes de definirmos como nossa história vai acabar, temos que levar alguns pontos importantes em consideração:

  • Qual é o conflito principal?
  • Como esse conflito afeta seus personagens?

A resolução de sua trama deve, como boa prática, ter uma sinergia com seu conflito principal. Se você conta uma história sobre redenção, é uma boa ideia que seu personagem possa se redimir no fim.

Falando em personagem, seu protagonista (e possivelmente os secundários) não será o mesmo que era no início da história. Certamente ele enfrentou perigos e aprendeu lições. Se ele era egoísta, talvez tenha aprendido o poder da amizade. Se começou ingênuo, talvez descubra como impor sua própria vontade. O segredo sobre o crescimento de seu personagem está nas provações e crises da jornada. Cada um dos pontos discutidos (Gancho, Chamado, Catalisador, Espelho, Crise e Clímax, etc) irá mudá-lo de maneira que, no final, ele seja uma pessoa (ou animal, planta, o que seja) mudada. Para o bem ou para o mal.

Exemplos de Resolução

  • Jogos Vorazes: Katniss desafia os juízes dos Jogos e sobrevive. Ela agora tem uma visão distinta do governo controlador.
  • Senhor dos Anéis: A Sociedade se separa. Frodo resolve seguir seu caminho e destruir o Um Anel, custe o que custar.
  • Harry Potter: Harry derrota Voldermot. Ele agora sabe que, enquanto viver, Voldemort pode retornar para conseguir sua vingança.
  • Star Wars: A Aliança destrói a Estrela da Morte. Com o conhecimento da Força, Luke resolve treinar para destruir o Império.

Finalmente, vale a pena estruturar?

A escrita é uma arte muito peculiar.

Para efeito de comparação, analisemos outras áreas criativas como exemplo.

  • Para ser músico, é necessário, no mínimo, saber as notas e os acordes musicais. Muitos iniciantes aprendem sua técnica de músicos experientes. Para ingressar numa orquestra, é preciso estudar durante anos.
  • Poucos são os cineastas que não seguem uma educação formal na área de direção cinematográfica.
  • O mesmo vale para outras áreas como pintura, dança, entre outros. Técnica é tão essencial quanto expressão artística.

Por que, então, seria diferente para a escrita? Muitos afirmam que não é necessário estudar ou aprender técnicas de escrita, pois elas limitam a criatividade do escritor. Muito pelo contrário, elas existem para canalizar as ideias do autor. Obviamente, nem tudo funciona para todos os escritores. Cabe a cada um identificar as técnicas que os ajudem a guiar sua escrita.

Essa funcionou (e funciona) para mim. =)

Para saber mais sobre o Método dos Sete Pontos (em inglês), acesse:

http://theselfpublishingtoolkit.com/seven-point-story-structure/

http://www.writerstoauthors.com/how-to-outline-a-novel-seven-point-story-structure/

https://www.keepwriting.com/tsc/magnificent7plotpoints.htm

http://csidemedia.com/gryphonclerks/2012/12/16/dan-wells-seven-point-story-structure/