CONTOS VENCEDORES DO I CONCURSO DE FICÇÃO RELÂMPAGO



Contos Vencedores do I Concurso de Ficção Relâmpago

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VENCEDOR: Fins de Janeiro – Bruno Müller

As batidas do monjolo marcavam o tempo que resistia em passar, naqueles dias modorrentos de janeiro. A velha, sozinha, bordava em sua cadeira, acompanhando os murmúrios  do moinho na água e os baques da madeira nos grãos. Seu casebre, perto de uma das colunas das grandes construções, só não era esquecido naquela imensidão pois ficava na beira da estrada, e muitos batiam à sua porta pedindo ora informação, ora conselhos, ambos servidos com café.

Baque. Ela já havia se acostumado, ainda que fosse por vezes tomada pela tristeza, contagiada pelos que passavam por ali. À noite, as pancadas conduziam o passar das horas, que durante o dia era medido pela luz do sol que refletia nos muitos vidros coloridos, espalhados pela casa.

As pontes impossivelmente altas cruzavam os ares, as longas colunas de suas fundações perfurando a terra e se elevando como enormes espinhas de peixe. Todos os caminhos que cortavam o céu, ignorantes da cabana da velha a seus pés, encontravam-se no topo daquele morro de pedra, lá longe, onde ficava a mais alta das cidades. Suas muralhas cor de cobre, encarapitadas umas sobre as outras, eram da mesma cor dos parapeitos que voavam sobre o vale.

Fora algum ancestral da mulher que, desistindo da vida naquela cidade triste e distante, havia limpado e cercado aquele pedaço de terra. Talvez o mesmo antepassado tenha feito o engenho e o monjolo que estalava, transformando milho em farinha.

Outra pancada. Era aquele som que a mantinha sem medo, mesmo vivendo sozinha, enquanto via as pessoas caminhando lá no alto. Não sabia mais quanto tempo lhe restava, e mesmo tendo saído poucas vezes da sua casinha, não se arrependia da vida que tivera. Era tranquila. Solitária, mas tranquila. Talvez isso ajudasse os que vinham em busca de seu conselho.

Os mercadores e viajantes, que entravam e saíam da cidade, faziam muitos caminhos pelas pontes altas, por escadas que desciam as colunas enormes, por estradas de tijolo e terra que costuravam o vale verde como uma grande colcha. As batidas à porta da velha somavam-se às dos fundos da casa.

Da cidade distante só tinha uma memória ainda mais longínqua, de quando era menina e visitara uma casa de vidros com a mãe. Frascos, vasos de flor cristalinos. A memória era triste, e foi sempre assim que se lembrou daquele lugar e daquelas pessoas.

Naqueles dias de verão era mais comum baterem à sua porta, quase todos os dias. Homens e mulheres, oficiais de alta patente, mães, pais, irmãos e irmãs. Filhos e filhas. Choravam. Ela servia café e os acalentava, iluminada pelos vidros da mãe.

Lá fora, outra batida.

Pela janela de sua cozinha, conseguia ver os telhados vermelhos da cidade, lá longe. As árvores frondosas, com suas folhas e flores cor de sangue, as pétalas carregadas pelo vento até o fundo do vale. Também via uma ou duas pontes, mas não a que fora construída sobre o seu teto. Não o parapeito de onde saltavam para a morte em seu quintal.

MENÇÃO HONROSA: Pequenas Vitórias – Maisa Fonseca

A coisa boa de uma infestação zumbi urbana é que é fácil de lidar. A gente cria um perímetro e monitora com câmeras de trânsito. Evacua, daí é simples: ninguém entra, ninguém sai. Depois a gente observa por uns meses, limpa tudo e devolve pra população.

É um trabalho chato, mas alguém tem que fazer né?

Senta aí antes de assinar, deixa eu te dar um conselho. Não fica monitorando as câmeras. É o pior trabalho. Você vai ter que tomar decisões difíceis.

A coisa fica complicada depois da evacuação, sabe… Quando a galera que ficou… Bom, quando a galera que ficou dá seu jeito.

O vírus é uma merda. Você apodrece antes de perder a consciência. Às vezes temos que matar zumbis extremamente eloquentes, que, nossa senhora, são inclusive pessoas maravilhosas, mas tem que matar, né? Ficou no perímetro, não pode sair.

Eu não devia contar essa história, mas vou contar, aí tu decide se vai alistar. Eu tava nas câmeras, naquela infestação que pegou o rio de Janeiro todo, faz uns cinco anos. Lembra? Tinha um posto de perímetro bem nos Arcos da Lapa.

Lá pelo quadragésimo dia, eu vi um vulto de cabelo comprido e bem esfarrapado, vindo lá das bandas da Central, carregando alguma coisa… Bem podre, não dava nem pra saber o que era, sabe como é?

O vulto veio se embrenhando pelo Centro, arrastando os pés, bem devagar. Zumbi anda devagar por que o músculo não regenera mais, né?

O louco era que esse aí era extremamente esperto. Só andava de manhã cedo e durante a tarde, depois do calor passar… Batia umas oito da noite, o bicho sumia até de manhãzinha.

Me apeguei. Curiosidade, manja? Eu só queria que aquele lá conseguisse descansar em paz, sabe?

Acabou que o bicho veio numa carreira na Mem de Sá, pra cima da gente. O zumbi veio chegando, olhando pra trás as vezes. Devia ter visto algo pior que ele. Algo mais assustador.

À uns vinte metros da barricada, um tiro só. Pum! No ombro. O bicho urrou… Barulho feio, do fundo da cova, aí arrastou o pé. Um outro tiro pegou na cabeça, certinho.

Caiu como uma bailarina. De forma delicada, aquilo se estendeu, colocando a trouxa que ele carregou esse tempo todo pra frente. Ninguém entra, ninguém sai.

horas depois, a trouxa começou a se mexer. Depois começou a chorar. Eu na câmera.

O bicho trouxe um neném, cara. Um neném. O bicho carregou um neném por 3 dias. Pra gente cuidar. O neném novinho, lá, chorando. O chefe disse ‘deixa morrer’. Cabou meu turno, fui dormir e o neném chorando. Naquela altura do campeonato, ninguém entra, ninguém sai. É um trabalho de corno, cara.

Vai se alistar? Que que cê tá olhando na minha mesa, hein? Essa foto? Minha filha. O nome dela é Vitória. Quantos anos ela tem? Quatro. É, quatro anos. Grande ela, né? Todo mundo acha que ela tem cinco anos. Mas ela tem quatro, tá? Ela tem quatro.

MENÇÃO HONROSA: Margarina – Robisom Lima

Juntou as migalhas de sua vida, todas espalhadas sobre o balcão do bar. As chaves de casa, os poucos cigarros amassados, umas moedas, sua dignidade. Da porta olhou para a penumbra do estabelecimento, para dois ou três fregueses em situação de abandono moral. Sentiu simpatia por eles, aquela cumplicidade que só a culpa consegue sustentar.

Lá fora a luz foi uma surpresa terrível. Amanhecera enquanto revisitava suas dúvidas, procurando respostas no fundo dos copos. Tomara algumas cervejas, uma ou outra tequila e uma frágil decisão.

Voltou caminhando, sua casa a umas poucas quadras dali. Tirou as chaves do fundo do bolso e junto com o chaveiro, intrometida, veio a aliança. Um olho dourado, inquisidor, observando sua alma culpada enquanto refletia o brilho da manhã. Encararam-se por uma pequena eternidade. O anel voltou para o bolso.

Entrou com cautela, pé ante pé, ouvindo o silêncio da casa. Jogou os pertences na poltrona, a bolsa, o casaco, as certezas, caminhou em direção a cozinha. Precisava de algo para afogar o desconforto súbito na boca do estomago. Achou que fosse a ressaca, mas eram suas angustias abrindo caminho garganta acima.

Estendeu a mão para a geladeira mas interrompeu o movimento, como se o tempo estancasse a realidade. Na porta de aço escovado um pequeno imã prendia dois fragmentos de realidade. Na foto uma família. Dia de sol, duas jovens mulheres bem-sucedidas, felizes, uma garotinha entre elas. Logo abaixo o bilhete: “Linda, fui levar a Pequena para a escolinha. Vou fazer o bolo, vc traz a margarina? Ass: Sua Loira ♥

No bolso, a mão tremula encontrou a aliança, mas não as certezas todas, jogadas na sala de estar…

MENÇÃO HONROSA: Animal – Leandro Samora

Pousou o trabuco sobre a cadeira, com a ponta de metal escorada na parede da cabana. Fez isso antes de fechar a porta: com a nevasca, precisaria das duas mãos livres para empurrar e depois passar o ferrolho.

Quando o vento finalmente silenciou, deixando para trás apenas um rastro úmido sobre o tapete, foi um alívio, mas também um sinal para maus pensamentos. O escuro repentino.

Tirou as luvas, tateou, achou os fósforos e acendeu o lampião.

Dezenas de pares de olhos mortiços e vidrados o encararam, com o brilho da chama lhes emprestando alguma vida. O homem retirou o chapéu de pele e levou o lampião até a lareira. As sombras se afastavam dele conforme caminhava. O cervo o observava de lado. O urso sucumbia ao peso de suas botas. A raposa aquecia seus ombros.

A cabana estava aquecida com o grande fogo. A garrafa reluziu na prateleira. O líquido se agitou e refletiu na madeira. Rolha fora.

A faca saiu do cinto e repousou ao chão. Depois foi a vez das botas atravessarem a sala e irem bater na cadeira ao lado da porta, derrubando o trabuco com um estrondo. Conforme o volume da garrafa baixava, o calor se espalhava no corpo, do fígado às extremidades. As peles caíam feito a primeira neve, com calma. Pelagens diferentes ao chão. Logo o homem estava nu encarando os olhares que evitava. Presas altivas eternizadas num rugir sem som. Orgulhosos e mortos senhores. O homem desviou o olhar e chorou sua vergonha até adormecer.

Não durou. O uivo o despertou. Estava próximo, muito próximo. A agressividade e o perigo. Levantou-se, trôpego, apanhando as peles. Logo era mais animal que homem novamente. Precisava sobreviver mais uma noite.

Uma mão foi ao trabuco e outra ao ferrolho.