Transcrição referente ao episódio 029 do Curta Ficção, sobre “Narração: Pontos de Vista”, que pode ser acessado clicando neste link.

Transcrição por Ton Borges


[Thiago Lee] Começa agora mais um Curta Ficção, o podcast de escrita que cabe no seu tempo. Eu sou o Thiago Lee.

[Jana Bianchi] Eu sou a Jana Bianchi.

[Rodrigo Assis Mesquita] Eu sou o Rodrigo Assis Mesquita.

[Thiago Lee] E hoje nós três vamos falar sobre pontos de vista de narrativa.

[Vinheta]

[Thiago Lee] Então hoje a gente volta a nossa linha de episódios mais técnicos sobre escrita, para o pessoal que gosta aí, e vamos falar sobre a importância de escolher um tipo de ponto de vista para sua narrativa e manter a aderência desse ponto de vista ao longo de todo o seu texto.

[Jana Bianchi] E quando a gente fala de tipo de ponto de vista, a gente não está falando a escolha do personagem que dá o ponto de vista da história, mas sim de onde a sua “câmera” narra os acontecimentos e o que se passa dentro da cabeça dos personagens, independente de quem é esse personagem ou do tipo da pessoa da narrativa escolhida, primeira, segunda ou terceira pessoa.

[Rodrigo Assis Mesquita] Esse episódio acaba dialogando um pouco com… um pouco não né, acaba dialogando BASTANTE com os episódios 016 e 017, em que a Jana e o Lee falaram sobre narração em primeira e terceira pessoa. Só que hoje a gente vai aprofundar um pouco na questão de consistência da escolha do ponto de vista e do problema de consistência, principalmente o interesse de autores iniciantes, numa questão que é um dos principais elementos de uma narrativa.

[Thiago Lee] Então já pode começar pelo, basicamente, o começo. 

Existem três tipos de escolha de ponto de vista. Se você procurar, você vai identificar várias classificações, nomenclaturas diferentes, mas simplificando dá para dizer que uma história tem o ponto de vista limitado, o ponto de vista múltiplo e o ponto de vista onisciente. Ao longo desse programa vai explicar cada um desses três tipos de narração com exemplos hipotéticos e também com referências a obras conhecidas. 

E para começar a falar do ponto de vista limitado. Nesse ponto de vista, todos os acontecimentos da história precisam ser narrados sob a ótica de um único personagem pelo menos de uma vez só. O personagem só pode ter informações diretas de coisas que acontecem no núcleo dele, qualquer coisa que tenha acontecido em outro núcleo, em outra época ou enquanto o personagem estava inconsciente, por exemplo, precisam ser transmitidas através de outros personagens. Nesse caso é interessante você mostrar a informação sendo transmitida. Quando seu personagem e leitor tomam conhecimento de algo ao mesmo tempo, é mais difícil cair na armadilha de “as you know, Bob”, que é a pessoa explicar informação para outra pessoa, uma vez que informação também é nova como protagonista. 

Além disso, o leitor só vai poder entreouvir pensamentos, opiniões e saber o que se passa dentro da cabeça desse único personagem no ponto de vista e de mais nenhum outro, a menos que esse outro personagem expresse isso diretamente ou a menos que ele saiba ler mentes. 

[Jana Bianchi rindo] HAHAHAHA, pode ser, é verdade.

[Thiago Lee] E no máximo o narrador personagem, ele vai especular ou desconfiar sobre o que os outros personagens pensam ou acham, mas se os nossos personagens não se expressarem, tanto o narrador quanto o leitor vão ficar com a incerteza sobre a opinião ou o sentimento de outros personagens. De maneira prática, como se o autor tivesse dentro da cabeça do personagem narrador e a grande vantagem disso é que a identificação do leitor com o personagem vai ser muito facilitada, já que todos os fatos apresentados eles consideram a perspectiva do personagem. 

[Jana Bianchi] Em narrativas em primeira pessoa é mais fácil você manter a aderência a esse ponto de vista, já que fica naturalmente estranho você estar narrando em primeira pessoa o que está se passando na cabeça de outra pessoa. Logo, isso já é geralmente um limitador desse problema de não aderir ao ponto de vista escolhido na história. 

Mas quando o ponto de vista é uma terceira pessoa limitada, é comum ver esses escorregões, como inserções e invasões do ponto de vista eventual de alguns personagens secundários ou os personagens que não sejam o narrador, mesmo o narrador não sendo o protagonista, tem livros em que o narrador, o personagem narrador, não é o protagonista. 

Por outro lado, a terceira pessoa limitada permite que o narrador insira alguns pensamentos ou até fluxo de pensamentos, que aproxima essa narrativa em terceira pessoa a narrativa em primeira. O Rodrigo daqui a pouco vai dar alguns exemplos reais de uma narrativa em terceira pessoa limitada, mas eu vou dar um exemplo hipotético agora, resumindo aqui o que o Lee explicou e o que eu acrescentei, mostrando o que você deve fazer e o que você não deve se fazer nesse ponto de vista. 

Então vamos lá, uma história hipotética com uma terceira pessoa limitada sob a ótica da personagem “Maria”. Você pode fazer a seguinte construção:

Maria não gostava que desconfiassem dela. Então, quando aquela desgraçada da Dona Paula acusou de roubo, ela não conseguiu se conter. Quem aquela filhinha de mamãe pensava que era? Ela não sabia o que era a vida dura. Quando a Maria jogou isso na cara dela, Paula gritou e começou a chorar um choro que parecia fingido”. 

Na primeira parte a gente vê algo de dentro da mente da Maria. Então, a gente vê ela falando que ela não gosta que desconfiem dela, vê também uma opinião direta e particular da dona Maria no caso, que a Dona Paula é uma desgraçada, que é filhinha de mamãe, o que não necessariamente é verdade ou que não necessariamente é a opinião do escritor ou mesmo do leitor, estamos vendo sob a ótica da Maria, e a gente vê algo que a Maria especula sobre a reação de Ana Paula, então o narrador fala “um choro que parecia fingido”, mas que pode ou não pode ser, a gente só saberia isso “objetivamente” se a própria Paula assumisse que ela fingiu um choro. Então esse é o que você pode fazer considerando o ponto de vista da Maria. 

Na mesma lógica se você usar o ponto de vista limitado, você não pode fazer essa mesma construção inicial e terminar o pedaço ali com, “Paula gritou e começou a chorar sentindo-se ofendida por Maria” ou até, “Paula gritou e, para não perder a discussão, chorou um choro fingido”. Por que você não pode fazer essa construção se você está num ponto de vista limitado? Porque a gente não está na cabeça da Paula, então a gente não pode assumir como o narrador que ela se sentiu ofendida ou que ela realmente fingiu o choro para não perder a discussão. Portanto, você pode sim dar dicas que façam com que a Maria conclua isso da reação da Paula, mas vai ter sempre essa ideia inexatidão. Ela fingiu o choro ou não? Ela realmente se sentiu ofendida ou não? Você tem que olhar tudo pelo ponto de vista da Maria.

[Rodrigo Assis Mesquita] Um livro que pode ser citado como um bom exemplo do uso da terceira pessoa limitada, que separa a opinião do narrador personagem do próprio escritor, pelo menos é o que a gente espera, é o Dias Perfeitos do Raphael Montes. O livro é narrado na terceira pessoa focado no Téo, que é um psicopata que sequestra uma menina chamada Clarice e a leva para uma viagem num lugar remoto. No livro ele gosta dela de uma maneira doentia e a gente tem acesso ao pensamento do Téo que ele realmente acredita que gosta dela, que ela gosta dele de volta, embora ele faça as coisas mais perturbadoras e violentas com ela. Então você, por exemplo, vê passagens como a seguinte:

 “Jantaram em silêncio, iluminados pela lamparina de querosene pendurada num gancho da porta. Clarice repetiu as panquecas, mas não deixou de demonstrar insatisfação por ter de comer com colher. Logo ao chegar, Téo havia escondido as facas debaixo de um sofá velho.

Ainda que a casa tivesse dois quartos, ele havia colocado todas as malas no quarto maior. Clarice não reclamou, e até pareceu feliz em dividir novamente a cama com ele. As vantagens dali eram muitas: podiam ficar à vontade, ela quase não precisava ser algemada, nem vestir a mordaça no banho — que era de água fria ou “congelante”, como ela fez questão de destacar num agudo histérico.

Pouco a pouco, Clarice reconquistava uma parcela de liberdade. Jamais voltaria a ser aquela menina esvoaçante que ele havia conhecido no churrasco. Afinal, relacionamento também é privação. Estavam atados um ao outro. Ele levaria Clarice consigo para sempre: já não podia viver ou mesmo morrer sem ela.

Dá para ver que pela passagem, que tudo o que sabemos da Clarice é sob o ponto de vista do Téo, por exemplo as expressões como “demonstrou satisfação” e também vemos a opinião doentia do protagonista narrador quando ele fala, por exemplo, que “relacionamento também é privação”, mostrando uma opinião que pelo senso comum, provavelmente não é a opinião do autor. Existe uma separação entre o autor e o pensamento do personagem. 

Esse recurso é interessante para provocar uma reflexão, para fazer uma crítica ou provocar angústia no leitor que está assistindo um relacionamento abusivo pela ótica do próprio abusador. 

[Jana Bianchi] Um outro tipo de ponto de vista é o ponto de vista múltiplo.

Esse tipo de ponto de vista, na minha opinião, é o mais confuso de entender, porque ele fica entre o ponto de vista limitado e o ponto de vista onisciente. Mas ele não é simplesmente um ponto de vista limitado aplicado a mais de um personagem narrador. Vou explicar: Por exemplo, embora pareça, eu não considero Game of Thrones um livro com um ponto de vista múltiplo, porque para mim ele é um livro em que cada conjunto de capítulos tem um ponto de vista limitado, porque dentro daquele capítulo só um personagem domina o ponto de vista que segue aquele núcleo de vários capítulos que formam esse núcleo. Você pode até ter visões diferentes sobre um mesmo evento, mas geralmente os núcleos estão separados no espaço-tempo, então é quase como se fossem narrativas independentes. O que eu quero dizer é que assim, praticamente se você pegar todos os capítulos da Arya, por exemplo, é uma história toda sob o ponto de vista da Arya. Se você pega todos os capítulos do Bran e separa, é uma história toda sob o ponto de vista do Bran. 

Só que no ponto de vista múltiplo, que é outra coisa, a troca de ponto de vista acontece de uma maneira mais frequente, geralmente a nível de cena, então cada cena é descrita unicamente sob o ponto de vista de um personagem, mas esse ponto de vista de uma cena para outra muda, então dentro do mesmo capítulo, dentro do mesmo trecho, dentro do mesmo núcleo, você tem o ponto de vista indo de cena a cena de um personagem para outro. A diferença desse ponto de vista múltiplo para o ponto de vista onisciente, que é o que o Rodrigo vai explicar daqui a pouco, é que mesmo mudando de ponto de vista, nenhum personagem sabe coisas que estão acontecendo longe do núcleo deles. Nenhum personagem sabe que na casa do lado, por exemplo, está acontecendo um assassinato, a menos que tenha um personagem lá. Portanto, essa é a diferença para o ponto de vista onisciente. 

[Rodrigo Assis Mesquita] Ao contrário do ponto de vista limitado, que tem uma diretriz bem estabelecida de que não pode haver nenhum pensamento ou conhecimento do que se passa na cabeça dos outros personagens, exceto na do próprio narrador personagem, não existem regras muito claras para definir o que é um ponto de vista múltiplo e como marcar isso. Alguns autores preferem usar algum sinal, algum tipo de quebra de bloco do texto, pode ser bolinha, espaço ou algum separador de cenas ou quebra de linhas, para delimitar os pedaços do ponto de vista de um personagem A ou de um personagem B, o que é uma boa porque facilita inclusive a identificação da quebra pelo leitor. Por outro lado, se for mal utilizado, o ponto de vista múltiplo pode causar estranhamento. Por exemplo, se você quer usar dois personagens narradores que são do mesmo núcleo e você demora muito para introduzir o segundo ponto de vista, pode parecer que você esqueceu que estava usando um ponto de vista limitado, se precipitou, comeu bola e acabou inserindo um pensamento de um personagem B ou C sem querer. 

Esse é um tipo de ponto de vista que deve ser utilizado com parcimônia, porque a escolha que ele dá de em um mesmo pedaço de texto ou de um mesmo capítulo com mais de um ponto de vista, pode trazer confusão para o leitor e pode trazer confusão até para o próprio escritor. Naquele exemplo que a Jana criou, um ponto de vista múltiplo poderia ser escrito assim, abre aspas:

Maria não gostava que desconfiassem dela. Então quando aquela desgraçada da Dona Paula a acusou de roubo, ela não conseguiu se conter. Quem aquela filhinha de mamãe pensava que era?”, aí tem um quebra de bloco, como pular uma linha, e continua:

Paula não podia deixar Maria ganhar aquela discussão ou sua mãe descobriria que ela mesmo havia roubado dinheiro. Para disfarçar e acabar de uma vez a conversa com aquela intrometida, gritou e começou a fingir o choro”.

 Ou seja, temos a mesma cena descrita pelos olhos de duas personagens, com opiniões e informações próprias que a outra desconhece, mas o ponto de vista não é misturado. Uma hora a gente vê o que sente e pensa Maria, outra hora a gente vê o que sente Paula, com uma clara quebra de pontos de vista no meio do bloco.

[Thiago Lee] E essa narração pode ter quebra de bloco, né, ou também quebras de capítulo dentro da história de um mesmo núcleo. Foi o que a Jana disse, é um pouco diferente do que é feito no Game of Thrones, uma vez que são várias histórias em pontos distantes sendo narrados ao mesmo tempo. Claro que eles se entrelaçam numa história maior, mas podem ser analisadas como pedaços menores com narradores limitados. 

Um bom exemplo de um livro que de fato é narrado de ponto de vista múltiplo é o Mistborn do Brandon Sanderson. O livro tem vários pontos de vista, entre personagens principais e secundários. Não é onisciente porque pouco se narra sobre o mundo em si, como acontece no exemplo de livro com ponto de vista onisciente, que a Jana vai dar em breve. Em Mistborn, a gente desconhece coisas do passado e do universo, as coisas que o leitor descobre sobre a história do mundo ou sobre o funcionamento da sociedade é descoberto simultaneamente com os próprios personagens ao longo da história.  Eu não vou ler trechos de Mistborn aqui, mas quem tiver curiosidade pode checar. Na edição em português da editora Leya, o livro é separado em capítulos e dentro de cada capítulo há a quebra de blocos indicados por uma linha em branco. O prólogo é narrado pelo ponto de vista de um personagem até uma quebra de bloco na página 16 desta edição, a partir desse momento narrado pelo ponto de vista do Kelsier até uma segunda quebra de bloco na página 23 e ali começa o ponto de vista de outro personagem que vai até o fim do prólogo. Daí todo o capítulo 1 é narrado do ponto de vista de Vin e assim por diante. Cada bloco se limita totalmente às opiniões e pensamentos de um único personagem, mas eles mudam dentro de um mesmo núcleo. Algumas vezes o ponto de vista muda dentro da mesma cena, o personagem narra a cena do telhado, dá uma quebra e aí outro narra da sala que pertence a esse telhado, mas um não sabe o que o outro está fazendo. 

Se você tiver com o livro aí, dá uma analisada que você vai ver, é um exercício que a gente recomenda para quem quiser entender certinho o que é um bom ponto de vista múltiplo. 

[Rodrigo Assis Mesquita] E o último ponto de vista dos clássicos é o ponto de vista onisciente.

Nesse ponto de vista não há limitações. Algumas bibliografias usam o termo de “narrador deus”, porque o narrador não só consegue transmitir o que está se passando dentro da cabeça de qualquer personagem, como apontar as informações do passado, do presente e do futuro daquele universo e dar vislumbres das coisas que estão acontecendo em outros lugares longe do olhar dos personagens. 

É o ponto de vista mais flexível, porque você pode simplesmente pular da mente de um personagem para outro, aproximar e se afastar do pensamento de qualquer personagem como bem entender. Uma desvantagem desse ponto de vista é que pode tornar um pouco mais difícil a identificação do leitor com o protagonista, já que o tempo todo você vai apresentar opiniões e visões diversas a respeito de um mesmo fato e numa mesma cena até. Pode ser que a opinião do escritor fique mais evidente aqui também, já que em alguns momentos ele vai fazer julgamentos fora do ponto de vista de um personagem particular. Julgamentos mais neutros ou meta-texto, vamos dizer assim.

[Thiago Lee] Na nossa visão, esse ponto de vista é o mais perigoso. É claro que levando em consideração a cena literária atual, este ponto de vista já foi muito mais comum de ser utilizado no século passado, muitos dos clássicos da literatura brasileira utilizavam um narrador onisciente, mas esse ponto de vista é o que parece mais fácil porque não tem limitação, mas até por isso é que dá mais brecha para um uso que possa parecer desconhecimento da ferramenta do ponto de vista.

É até difícil usar aquele exemplo hipotético da Maria e da Paula, porque é em uma narrativa onisciente, aquele mesmo trecho poderia ser narrado de milhões de maneiras diferentes. Mas se eu tivesse que dar um exemplo, seria algo assim:

Maria não gostava que desconfiasse dela. Então quando aquela desgraçada da Dona Paula a acusou de roubo, ela não conseguiu se conter. Mas patroa desconfiando de empregada não era algo novo. 300 anos antes, no outro lugar onde aquela casa tinha sido erguida, uma baronesa de café açoitava a sua escrava porque seu diadema havia sumido. Paula olhou para Maria e pensou o quanto aquilo era absurdo. Para disfarçar e acabar de uma vez a conversa com aquela intrometida, gritou e começou a fingir um choro”.

O começo desse trecho está sob o ponto de vista da Maria, com suas opiniões e fluxo de pensamento, o segundo trecho já não está sob o ponto de vista de nenhum personagem, com uma informação nenhuma das duas tem meio de saber, e o terceiro trecho está sob o ponto de vista da Paula. Ou seja, mesmo com esses focos, está no âmbito do ponto de vista onisciente, só que a pessoa precisa saber o que ela está fazendo para poder não cair armadilhas.

[Jana Bianchi] Um livro que usa esse ponto de vista com extrema competência, na verdade é praticamente uma lição disso, eu li observando muito isso, é o livro It: A Coisa do Stephen King. Então é assim, o ponto de vista nesse livro é totalmente onisciente e é muito, muito dinâmico. É até engraçado, porque isso combina com a história. Na verdade, a gente tem informações sobre o passado da cidade de Derry, na forma de flashbacks, ao mesmo tempo que a gente tem um ponto de vista dos protagonistas adultos e um ponto de vista deles quando são crianças. Mas né, Stephen King é Stephen King, então ele usa essa ferramenta com muito esmero. Então eventualmente o pensamento de vista de alguns personagens secundários e terciários aparecem, mas são coisinhas bem pulverizadas, coisinhas extremamente bem colocadas, às vezes usando justamente a escassez de informação daquele ponto de vista para destacar a Coisa. Em outros momentos, o que ele faz também é concentrar profundamente a narrativa em um personagem e então permanece ali por um tempão deixando o leitor se relacionar bem com o personagem e criar empatia. Em outros momentos ainda, ele usa a narrativa onisciente para transformar a cidade de Derry em um personagem. Então é aquela narrativa mais afastada dos personagens, citando coisas dos arredores ou acontecimentos antigos da cidade que os personagens não teriam como saber. 

Esses artifícios também são usados para causar tensão no leitor, já que neste caso o leitor tem uma informação que os personagens não têm e isso, do leitor ou espectador ter uma informação que os personagens não têm, é um dos princípios de suspense do Hitchcock, a ironia dramática, que é aquela famosa bomba com contagem regressiva que está debaixo da mesa, a gente vê mas os personagens não, o que causa tensão na gente embora os personagens estejam ali de boa. 

Eu também não vou ficar lendo grandes trechos aqui, eu recomendo que vocês deem uma folheada no It que vocês já vão perceber isso, mas o começo do livro já é um prenúncio claro dessa narrativa onisciente, porque em vez de começar sob do ponto de vista de um personagem, o livro começa assim:

O terror, que só terminaria 28 anos depois (se terminasse), começou, até onde sei ou consigo saber, com um barco feito de uma folha de jornal flutuando por uma sarjeta cheia da água da chuva.

O barco balançou, quase virou, se endireitou, mergulhou corajosamente nos redemoinhos traiçoeiros e continuou a seguir pela rua Witcham em direção ao sinal de trânsito que indicava a interseção dela com a Jackson

Apesar do uso ali no começo de “eu sei” ou “eu consigo saber”, o que eu acho que talvez até seja uma questão de tradução, não olhei o inglês, não existe um personagem aí nessa cena. Ninguém estava assistindo a famosa cena do menino perseguindo o barquinho, essa cena está sob ponto de vista do menino, não está sob ponto de vista do Pennywise, não está sob o ponto de vista de personagem nenhum e mesmo que estivesse, seria impossível acompanhar o barquinho pela enxurrada, depois entrando no esgoto em que ele dá o endereço que o barquinho segue, muito menos saber o futuro, ele fala no começo da história que o terror só terminaria 28 anos depois, se terminasse, então isso é um ponto de vista totalmente onisciente. 

Portanto, se você está lendo ou não leu ou se tem o livro aí para dar uma olhada, eu recomendo que você leia focando nisso para perceber como é usar desse ponto de vista.

[Thiago Lee] Bom, nosso tempo aqui está acabando, mas a gente ainda tem algumas considerações gerais depois de explicados os três pontos de vista.

A primeira coisa é: Muitas vezes a escrita com o narrador em terceira pessoa limitada é chamada de discurso livre indireto. Isso é um discurso muito estudado, sobre o qual você pode ler bastante para extrair todas essas vantagens, teria que ter um episódio inteiro só sobre isso para explicarmos todas as nuances. Muitos autores gostam deste discurso porque ele mantém as possibilidades de explorar a terceira pessoa ao mesmo tempo que se pode colocar pensamentos de protagonista e fluxo de pensamentos por meio da narrativa.

[Jana Bianchi] O segundo ponto dessa conclusão é escolher seu ponto de vista com consciência para conseguir extrair o melhor da sua história.

Se não interessa muito o que está acontecendo no mundo ao redor e sim o que se passa na cabeça de seu personagem, considere um narrador limitado ao invés de um onisciente. Se você está narrando uma mega história épica que se passa ao longo de muitos anos e tal, talvez o onisciente seja melhor porque você não precisa ficar pulando de ponto de vista, você já vai narrar a história como um todo, como um deus.

Mas independente do ponto de vista escolhido, a lição é: Seja consistente. Não fique mudando dentro da mesma obra de um para o outro. Então assim, não escreva metade do livro num ponto de vista limitado de um personagem A e de repente, muda para o personagem B. Se for o caso, alterna ele sempre, planeja com antecedência, estrutura essa história para ter blocos de ponto de vista como Game of Thrones ou para ter separadores entre esses personagens bem distribuídos ao longo da história. Significa que, se puder, se a história explicar, não esqueça de um personagem por muito tempo, se você vai usar vários pontos de vista. A troca à revelia, por assim dizer, de ponto de vista, constantemente é um sinal de um autor iniciante que está contando a história como vem à cabeça e não tentando seguir algumas técnicas de narração.

[Thiago Lee] Sim, e só um detalhe também sobre isso aí de você ser consistente, é que assim, é muito comum, eu faço isso o tempo inteiro de às vezes, sei lá, eu estou narrando em terceira pessoa e no meio de um parágrafo, uma linha qualquer que seja, um verbo eu uso na primeira pessoa e depois volto para terceira e não percebo. Isso pode acontecer, claro que com o tempo você vai melhorando isso aí, mas assim, lembrando que acontece, mas na primeira revisão pelo menos você tem que começar a passar nisso e perceber as coisas. Então, sei lá, não fique se preocupando tanto nisso não, na revisão você vai pegar conscientemente e ler seu texto tentando pegar essas inconsistências de narrador, de tempo verbal, etc.

[Rodrigo Assis Mesquita] Isso que o Lee falou é até muito comum principalmente quando você começa a escrever pensamentos na terceira pessoa  e, por exemplo, quando você vê, você já está escrevendo na primeira. Mas isso aí você pega na revisão mesmo, se você for muito preocupado, você acaba escrevendo.

E enfim, no final, a terceira conclusão é que não existe um ponto de vista correto, mais aceito ou melhor, e até estou lembrando agora que já perguntaram várias vezes qual seria o melhor ponto de vista para a ficção científica, fantasia ou para isso ou para aquilo. O que existe, como a gente já falou nesse episódio, em parte é uma tendência histórica aleatória e que parece pelo menos que atualmente se dá mais valor a um ponto de vista limitado, embora também o Brandon Sanderson já tinha falado no podcast dele lá que, por influência do cinema, está tendo o que eles chamam de ponto de vista cinematográfico.

[Jana Bianchi] Sim, sim, é verdade.

[Rodrigo Assis Mesquita] Mas o principal é a função que o ponto de vista vai ter na sua história. Qual é o clima, qual é a intenção sua com escolha de determinado ponto de vista? No passado já foi muito mais comum a narração onisciente e agora já não é mais tanto, já é mais a terceira pessoa limitada. Inclusive, acho que é por causa do cinema. A terceira limitada também, como o Lee falou, é mais conhecida como discurso livre indireto e se você pesquisar, é algo extensivamente dissecado.

Mas o que interessa, além da consistência e da coerência no livro inteiro, na história inteira, é que você escolha um ponto de vista que extraia o melhor da sua história e que sirva melhor a proposta que você quer passar na sua história. Tem dois livros, um a gente sempre cita que ao lado do Wonderbook que é Como Funciona a Ficção do James Wood, que tem em português, e outro é o The Art of Fiction do John Gardner, esse aí procurei e infelizmente só achei inglês mesmo, não sei se tem em espanhol, mas o John Gardner chega a dar um exemplo que seria do ponto de vista múltiplo. Por exemplo, um rapaz está dentro da casa dele e começam a bater na porta lá fora, esmurram a porta e ele não sabe quem é. Agora a escolha sua é, você se quer a cena passe um mistério de quem está lá fora, e aí talvez seja melhor você adotar uma terceira pessoa limitada da pessoa que está dentro, ou você se quer mostrar uma outra coisa ou o foco não é o mistério, aí você passa para o ponto de vista do lado de fora da casa, mostrando quem está batendo na porta, porque o seu foco não é esse, é alguma outra situação, você quer é mostrar o relacionamento desses dois personagens, por exemplo.

[Thiago Lee] Bom, acho que é isso, não é?

Terminado o episódio, a gente recomenda que você confira, ou confira de novo, os episódios 16 e 17, porque juntos esses três episódios praticamente esgotam o conteúdo mais geral, assim digamos, do ponto de vista da narrativa.

[Jana Bianchi] A gente quer saber também se você já tinha prestado atenção ao ponto de vista das suas histórias desse jeito mais técnico. E se sim, qual é o ponto de vista que você mais curte usar, porque e tal. Também se você já percebeu algum uso muito interessante de ponto de vista em algum livro que você leu.

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[Jabás]

[Thiago Lee] E esse foi mais um episódio do Curta Ficção, o podcast de escrita que cabe no seu tempo.

Eu sou o Thiago Lee.

[Jana Bianchi]  Eu sou a Jana Bianchi.

[Rodrigo Assis Mesquita] Eu sou o Rodrigo Assis Mesquita.

[Thiago Lee] Até a próxima pessoal.

[Vinheta de encerramento]