[TRANSCRIÇÃO] CF 044 – Introdução ao Diálogo

Transcrição referente a o episódio 044 do Curta Ficção, sobre “Introdução ao Diálogo”, que pode ser acessado clicando neste link.

Transcrição por Ton Borges


[Thiago Lee] Começa agora mais um episódio do Curta Ficção, o podcast de literatura que cabe no seu tempo. Eu sou o Thiago Lee.

[Jana Bianchi] Eu sou a Jana Bianchi.

[Thiago Lee] E hoje vamos fazer uma introdução sobre diálogos.

[Vinheta]

[Thiago Lee] Depois do episódio 036 que a gente falou sobre pirataria de livros, nós emendamos uma série de sete episódios com convidados, que foram todos incríveis por sinal, e assim, a gente ama os papos e aparentemente vocês também, porque o feedback foi bem positivo, mas estávamos com saudade de fazer um episódio um pouco mais técnico com dicas de escrita. Então a gente preparou hoje um programa sobre diálogos, pesquisamos e tudo mais, e o diálogo é um elemento muito importante da narrativa em prosa. Segundo o livro Como Escrever Diálogos da Adela Kohan, vamos colocar o link abaixo na descrição, o diálogo é uma estratégia literária que aproxima o leitor dos personagens, por ser uma maneira de apresentar as falas sem o intermediário aparente do narrador.

[Jana Bianchi] Segundo a autora, um escritor competente consegue usar o diálogo, que é formado tanto pelo discurso, que é a fala em si, quanto pelo inciso, que é o esclarecimento feito pelo narrador, para revelar mais sobre o personagem do que o narrador faria com a descrições físicas ou psicológica diretas. Além disso, o diálogo também dinamiza uma narrativa, em termos até visuais pois fica até mais fácil de você ler, e serve para passar informações sobre outros personagens, ambientações e até fatos da história.

 [Thiago Lee] E nesse episódio a gente vai falar sobre como escrever bons diálogos, principalmente sobre como aproveitar ao máximo as possibilidades que essa ferramenta oferece. E para isso, nós separamos aqui um monte de coisa que a gente já leu e já ouviu a respeito em quatro grandes dicas sobre esse elemento narrativo.

Sem mais delongas, vamos começar com a primeira: Use o diálogo como forma de caracterização é a dica número 1.

Como a Jana já introduziu, o diálogo tem algumas funções determinadas, algumas delas são funções mais estruturais, como dar agilidade ao texto com sumários muito longos, mas uma das mais importantes dessas funções, e talvez seja a principal, é fornecer a caracterização do personagem que fala, dos seus interlocutores, do ambiente e da própria história. O tipo de discurso do personagem, por exemplo, é um jeito muito eficaz de transmitir a localização da história no tempo e no espaço e o posicionamento do personagem em questão em uma estatura geopolítica, econômica ou social que seja.

Então no primeiro caso, um diálogo cheio de palavras rebuscadas e termos fora de uso podem sugerir que a história se passa no passado, mas no segundo caso, um discurso mais rebuscado pode indicar que o personagem teve educação formal maior, um discurso cheio de gírias pode indicar que o personagem é jovem, um discurso com um vocabulário mais simples com erros de grafia pode indicar que quem fala é uma criança pequena. No caso do Brasil que é gigante e cheio de registros diferentes de fala, de acordo com o estado, com a cidade ou com a região, alguns maneirismos e expressões podem mostrar de onde a personagem vem, sem que isso precise ser especificado, então ele pode ser mineiro e usar “Uai”, ser gaúcho e usar “Tchê”, paulistano e usar “Meu”. Só toma cuidado porque baiano não fala “Meu rei”, tá?

[Risos]

[Thiago Lee] Isso é só lenda urbana, então sempre pesquisem antes.

E de maneira análoga, se você colocaria uma ou outra palavra de um outro idioma no meio da fala do personagem, você pode sugerir qual a ascendência ou nacionalidade dele.

[Jana Bianchi] E aí o legal do diálogo é que ele é capaz de fornecer essa caracterização de forma indireta. Claro que um personagem pode falar por exemplo, sei lá, “Ah, a Mariazinha é loira” e ele vai passar de forma direta a caracterização física da Mariazinha lá, assim como o narrador faria né, por exemplo, “a Maria era loira”. Mas ele também pode, por exemplo, gaguejar ao se apresentar em público e passar essa informação indireta de que ele ali, o locutor, é uma pessoa tímida ou pelo menos está nervoso diante de uma plateia. Então isso torna essa transmissão de informações mais natural. Você mostra mais do que você conta. 

Em alguns casos esse diálogo pode inclusive deixar a cargo do próprio leitor interpretar aquela informação. Então nesse caso da pessoa que gagueja, se você fala lá pelo discurso direto, através do narrador, “fulano estava nervoso”, você tira a possibilidade de deixar o leitor inferir ou não um eventual nervosismo da personagem. Então, por exemplo, se o personagem estava só fingindo de nervosismo, o narrador não poderia mentir, você não poderia colocar lá na narração “fulano estava nervoso” e depois revelar que era um disfarce. E por outro lado, se você desse de bandeja essa informação que era um fingimento, então se você pegasse lá na narração como um sumário e falasse “fulano fingiu que estava nervoso”, a experiência de leitura seria outra, até um pouco mais pobre, porque você estaria ali recebendo a informação direta ao invés de interpretar. 

Agora pensando nisso, tem uma outra coisa, né? A gente tem que tomar cuidado porque o diálogo não deve existir se ele não tiver uma função. Se ele não estiver caracterizando alguma coisa ou se ele não estiver ajudando o ritmo da narrativa, o diálogo pode ser um tiro no pé, o que leva a gente para dica nº 2 que é: Saiba diferenciar um diálogo real e um diálogo dentro de uma narrativa

Bom, então é muito importante ter em mente que um diálogo dentro de uma narrativa não deve simplesmente reproduzir ali o diálogo da vida real por duas razões. Primeiro que na vida real a gente não usa o diálogo só para deliberadamente caracterizar coisas, afinal estamos usando o diálogo o tempo todo, e segundo que as nossas conversas reais são confusas, repetitivas, chatas e muitas vezes inúteis.

Então o escritor, quando está escrevendo, ele tem um tempo de raciocínio, um domínio da situação ali, que permite que as conversas sejam organizadas para cumprir suas funções narrativas, muito diferente do que acontece na vida real, a menos que você esteja falando com o seu chefe e você está ali na sua cabeça organizando tudo que você vai falar certinho.

Vamos dizer assim, suponha que você está saindo de casa e você perdeu a chave da porta. Você vai, provavelmente, trocar linhas e mais linhas de diálogo com sua mãe, enquanto procura na chave: “Onde tá a chave?”, “Não sei, olha no quarto”, “Não está lá”. Mas, se você tem essa situação com seus personagens e essa conversa específica ali de procurar a chave não transmite nenhum tipo de informação sobre os dois personagens, você e sua mãe, é muito mais elegante você simplesmente resumir isso a “ficaram 15 minutos procurando a chave”, do que fazer esse diálogo inútil. Então claro que você pode usar esse diálogo para passar informação sobre a ambientação da casa, ou sobre a relação de mãe e filha dos personagens, ou sei lá, sobre algumas características particulares de cada um, mas se a conversa for só, “Nossa, mãe! Perdi a chave”, “Não tá no quarto?”, “Não já olhei”, “Onde você viu a chave por último?”, “Quando fui na padaria”, isso não faz o menor sentido. Supera esse diálogo aí, bota uma meia cena resumindo o que aconteceu e segue a vida. 

Por isso, cuidado com a armadilha também de achar que tudo que você escreve é a caracterização. Porque também não tem uma regra muito clara para definir isso, mas se você olhar o seu diálogo com carinho, você vai ver que em alguns casos tem como você substituir o diálogo inteiro ou uma parte do diálogo por um trecho de narrativa comum e às vezes é melhor você fazer isso.

[Thiago Lee] Sim, imagina que você, nessa cena chave, cria uma mãe abusiva ou alguma coisa assim e o menino pergunta “Mãe, cadê a chave?”, então a resposta dela é “Puta que pariu, Marquinhos, você sempre perde tudo!”. Isso já é uma caracterização de cara com uma fala só.

[Jana Bianchi] Exato.

[Thiago Lee] Mas sobre o segundo ponto que você disse, vocês já tentaram experimentar gravar um diálogo real e escutar depois? Depois que eu comecei a estudar sobre isso, não o diálogo real, mas eu comecei a prestar mais atenção no diálogo eu estava tendo ou das outras pessoas ao meu redor e é sempre muito confuso. As pessoas interrompiam umas às outras, as vezes você quer falar um assunto, aí você não termina o assunto e volta depois, existem desentendimentos, uma pessoa pede para a outra repetir, há pessoas que falam “tipo, tipo” o tempo inteiro, sabe? Às vezes uma pessoa não ouve direito, erro de fala, confusão, pausas, repetições excessivas. 

[Jana Bianchi] É um caos. 

[Thiago Lee] Então tem alguma circunstância em que a transcrição da fala deve ser perfeita, como em alguns projetos jornalísticos, por exemplo, gravações, enfim, mas na ficção isso não faz o menor sentido. Geralmente os escritores nem cogitam essa ideia de colocar repetições, gaguejos e tal, a menos que faça parte da caracterização do personagem e mesmo assim você precisa tomar cuidado na quantidade de “tiques” que você vai colocar, porque se colocar um pouco ou algum tique nervoso que o cara tem, alguma fala que ele fala direto, beleza, está caracterizando, mas não pode pôr em todas as falas dele, sabe? Só quando não está muito claro quem está falando, aí você põe uma caracterização lá para o leitor não ficar confuso. 

Às vezes a gente vê autores que se apegam muito na naturalidade do discurso, quando essa naturalidade vem da ficção, e que fica esquisita. É legal você criar um tique nervoso, como falei, ou um bordão, um bordão legal até porque ajuda muito a caracterizar esse personagem, e como já falou lá no primeiro tópico, o seu personagem pode repetir o tempo todo “meu, mano, meu” ou usar uma expressão frequente, tipo, “Cê acredita nisso?”,  “Pois é, né? Mas sabe o que acontece”. Porém, tome muito cuidado para que isso seja inserido de forma comedida e que pareça totalmente deliberado da sua parte, ou seja, de um jeito que não pareça um erro como autor e sim uma coisa coerente com o que você apresentou sobre determinado personagem. 

Um exemplo que eu queria até tirar de cabeça aqui, eu estava assistindo aquela série da Netflix lá, Mind Hunter, que é super legal inclusive, e tem algumas cenas que eles usam isso, se você rever a cena, você percebe que na vida real nunca seria daquele jeito. Mas eles utilizam isso para poder criar suspense na cena. Então os policiais estão questionando o suspeito e eles começam a fazer uma bateria de perguntas que na vida real, o cara falaria “Calma, espera aí, espera aí!”, tipo, como ele que vai responder cinco perguntas de uma vez só, sabe? Mas a combinação da postura do detetive com o suspeito, que está sendo acuado, então faz várias perguntas, mas são só retóricas, são para criar o suspense na cena e a pessoa que está assistindo ter essa sensação.

[Jana Bianchi] Todo mundo é muito mais astuto na ficção. É aquela coisa que, sabe quando está discutindo com alguém e aí depois você pensa “Nossa, deveria ter falado tal coisinha”? Mas o escritor tem o tempo de pensar e fazer isso. 

[Thiago Lee] E falando sobre essa coerência, isso já nos leva diretamente à terceira dica que é: Cuidado para não usar o diálogo como ferramenta de Infodump.

Para quem não lembra, o infodump é você jogar informações demais no texto sobre o seu mundo ou sobre o personagem de forma expositiva. Então, como na primeira dica, a gente falou sobre como o diálogo pode ser uma ferramenta de caracterização, uma forma de transmitir informações sobre ambiente ou mesmo sobre a história, mas isso aí cria um problema que é, a depender da sua história, inserir algumas informações no diálogo pode ser incoerente, forçado ou até ilógico. O diálogo abre muita brecha porque a gente conhece e como a gente já falou em outro episódio como o “as you know, Bob…”, que as vezes eu gosto de chamar de “a conversa entre o mordomo e a camareira”, é um fenômeno nós sempre mencionamos aqui porque ele realmente acontece. Portanto, se você tem alguma informação que os dois interlocutores já conhecem, ou você insere essa informação no sumário ou você cria circunstâncias muito específicas para colocar aquela informação dentro de um diálogo, de que forma justificada e natural. 

Um exemplo que eu queria tirar aqui do livro Deuses Americanos, é quando o Shadow, que é o protagonista, está preso e vai para a entrevista para da condicional, onde ele pode ser solto, etc. Então o entrevistador passa pelo histórico dele, tipo, “você aqui é Shadow Moon, 27 anos, casado e tal”, porque ele está lendo uma ficha que está inserido naquele contexto bem específico.

[Jana Bianchi] Um contexto em que faz sentido ele ler essa ficha, porque é um processo real.

[Thiago Lee] Isso.

Essa característica diálogo pode inclusive ser usada como ferramenta do tipo: Um personagem fala para o outro “Quer me dizer aquilo que aconteceu de novo? A fulana blá blá blá blá”, aí o outro personagem responde “Shiiiiu! Não vamos falar sobre isso aqui.”, então ao invés de deixar o primeiro personagem repetir a informação que todos já conhecem, você usa esse próprio conhecimento pra interromper a fala e gerar um mistério para o leitor, por exemplo. Algo tipo “Ah, lembra o que aconteceu na noite de 22 de setembro de 1905?”, esse tipo de coisa assim, ou então tipo “O que a fulana fez no verão passado agora vai fazer de novo?”.

[Jana Bianchi] Ai a gente, como leitor, fica “Uau, nossa! O que é isso?”, né?

Além desse, outro fenômeno que também pode acontecer através do diálogo que o Lee já começou a falar um pouquinho é o famoso despejo de informações ou infodump. Então temos um recurso muito interessante na ficção, especialmente na fantasia e na ficção científica, que é o chamado “personagem orelha”, acho até que já mencionamos também em outros episódios.

Esse “personagem orelha” é o personagem que ele não conhece um mundo ou uma faceta específica de um universo ficcional, o que permite que você exponha informações para o leitor, como escritor, através da interlocução desse personagem, que é ignorante desse universo ou dessa parte do universo, com um personagem que já conhece esse mundo. Então por exemplo, o Harry Potter mesmo, apesar de ser o protagonista, é um personagem orelha e muito do que a gente aprende logo no começo da série sobre o mundo bruxo, a gente aprende através dos diálogos dele com o Rony no Expresso de Hogwarts, porque justamente o Rony está explicando para o Harry como funcionam algumas coisas, uma vez que ele não conhece nada disso.

O problema é que essa ferramenta incrível, que é o personagem orelha, pode se transformar de novo em um tiro no pé, se o autor não tomar cuidado e usar esses diálogos para despejar informação não necessariamente pertinente na trama. O que o Lee falou foi sobre informações que sejam coerentes, então se seu personagem já sabe alguma coisa, você não vai explicar para ele de novo, mas eu acho aqui a gente está falando de uma outra coisa que é a seguinte: Tem coisa que você vai ter ali no seu universo que não precisa entrar naquele momento ou que não precisa entrar em momento algum. 

Em muitas coisas na escrita, em geral, a palavra é “equilíbrio”. Então se você usa uma terceira pessoa onisciente, que pode narrar tudo o que está acontecendo no seu universo, ou então uma primeira pessoa que conhece bem o universo, você tem que tomar muito cuidado e distribuir informações entre o sumário e o diálogo de um jeito legal. Com isso, além de você não sobrecarregar o texto, você acaba liberando também o diálogo para outras funções, que é o que a gente vai falar um pouco na dica nº 4, que é: Use o diálogo como um meio de inserir subtexto na história. 

Bom, eu não lembro se nós já comentamos aqui, mas o subtexto é uma parte muito importante da história, porque quando estamos contando uma história, a gente não está só descrevendo uma série de eventos. Quando a gente está conversando com outras pessoas ali na rua, na nossa vida normal, geralmente está só “Ah, aconteceu tal coisa mais cedo comigo, foi assim, assim, assado” e aquela a conversa não tem grandes significados maiores. 

[Thiago Lee] E ainda assim, os seus gestos, a forma como você fala, a entonação, etc, elas carregam um significado que a gente pode passar na literatura com as coisas que dão suporte ao diálogo, como o sumário.

[Jana Bianchi] Sim, como a descrição, a atribuição do diálogo, “fulano gritou”, “fulano gemeu”, essas coisas. Mas assim, o importante é que quando estamos escrevendo uma história, a gente está sim descrevendo uma série de eventos, também. Porém, a gente está, em geral, querendo passar uma mensagem, consciente ou inconscientemente, e, consciente ou inconscientemente, é recomendado que essa mensagem esteja sempre diluída dentro da história, ou você corre o risco de acabar com uma história muito panfletária ou muito didática ou de repente com uma fábula, que é um formato que termina como uma lição de moral e tal, que não é um formato tão popular, embora tenhamos algumas recontagens de fábulas e fábulas modernas. 

No entanto, embora o subtexto, que está sempre intimamente ligado com o tema ou com a chamada “ideia governante da história”, que é um conceito que tem naquele livro Story, do Robert McKee, que é bem interessante, embora esse subtexto possa estar distribuído por toda a narrativa, o diálogo abre um espaço muito adequado para essa coisa de falar nas entrelinhas, até porque a gente faz isso, como o Lee falou nos diálogos na vida real. Por isso, além de a gente usar gestos, às vezes a gente fala uma coisa querendo dizer outra, às vezes a gente fala uma coisa esperando que outra pessoa entenda outra coisa propositalmente, o famoso “Você tá bem?”, “Aconteceu alguma coisa?”, aí você responde “Não” e você quer que a outra pessoa perceba que aconteceu alguma coisa, entendeu? E a gente também usa muitas metáforas nos nossos diálogos ou às vezes a gente atribui ao diálogo alguns sentidos mais profundos do que eles parecem conter dentro de um contexto.

Claro que, de novo, “na ficção”, nós como pessoas oniscientes ali, autores oniscientes na história, a gente pode se debruçar em cima dos diálogos e escrever esses diálogos mais astutos e mais espertos que raramente iam acontecer na vida real. Então, por exemplo, imagine que seu personagem acabou de levar um pé na bunda do namorado, porque ele fez uma bobagem. Ele pode estar lá, lavando uma louça, a vida normal, aí cai uma taça de cristal no chão e ele diz para o interlocutor dele “Nossa, algumas coisas são tão frágeis que uma bobagem qualquer já quebra essa coisa em mil pedacinhos”. Ou seja, o cara está ali falando da louça, mas ele está falando do relacionamento dele, então olha aí uma filosofia embutida sobre a fragilidade e a efemeridade do amor em uma lavagem de louça.

[Thiago Lee] E isso você vê muito em audiovisual, seriado, filme, porque como você tem um tempo limitado para contar as coisas, você não pode descrever demais. No livro, assim, “teoricamente” você tem quantas páginas quiser, a não ser que você tenha alguma restrição, logo você pode até usar isso para falar depois, mas em um filme que você tem entre uma hora e meia e duas horas e meia, você tem que usar todos os artifícios possíveis para sumarizar relacionamentos ou background em uma única fala, por exemplo. Portanto, pessoal usa muito esse simbolismo, é muito muito comum. 

Agora, uma dica que eu posso dar também, é que quando eu vou escrever, esse simbolismo, esse subtexto, nunca vem de primeira, raramente acontece, a não ser que você já tenha alguma noção do que você vai escrever.

[Jana Bianchi] Ou uma metáfora bem específica que você já pensou antes de escrever e tal.

[Thiago Lee] Isso, então o que eu geralmente que eu faço é: Eu escrevo o que cada um quer falar mesmo, e aí depois eu volto, vejo que o diálogo está uma merda, daí eu vejo como é que eu posso falar isso, dizer o que eu quero com o que eu escrevi, só que sem dizer isso, sabe. Existem várias técnicas de treino de diálogo que é, por exemplo, “faça um diálogo em que pai e filho estão querendo dizer que se odeiam, mas sem usar a palavra ódio, raiva, rancor, não use as palavras exatas do sentimento que você quer passar”, então você tem que fazer de outro jeito, criar uma situação, pode ser até a situação aí do “cadê a chinela?”, quer dizer “cadê a chave?”

[Jana Bianchi rindo] Cadê a chinela HAHAHHAHAHAHA, muito bom. Seria até melhor se fosse chinela.

[Thiago Lee rindo] É o menino tá procurando a chave e no final a mãe joga a chinela no filho, HAHHAHAHAHA.

Então assim, use uma situação que pode mover a história para frente e nessa situação, você cria o contexto, cria a mensagem que você quer passar. Acho que isso é bacana.

[Jana Bianchi] Sim, uma coisa que eu pensei nisso, não vou dar spoiler obviamente, mas por exemplo, esses diálogos, com o subtexto, você pode usar temáticas que tenham a ver com a sua ambientação para fazer sentido naquela obra. Eu estou assistindo na HBO a segunda temporada de Westworld e ela bem cheia desses diálogos — até o pessoal brinca — que às vezes eles são até meio empolados demais, eles são até meio canastrões, mas eu acho que tem diálogos bem legais e eles usam muitas dessas metáforas. Por exemplo, quando você está falando de que os personagens são os humanos, não os robôs, os hosts, eles usam muitas metáforas tecnológicas e tal, porém, quando você vai para cada um dos personagens, é muito interessante como eles criam esses diálogos que estão dentro da narrativa deles. Então, tipo, no episódio da segunda temporada em que Dolores faz um diálogo que tem tudo a ver com ser rancheira. Ela fala sobre uma doença que deu no rebanho, que o pai dela fez tal e tal coisa e isso tem tudo a ver com a história muito maior, que a história dos hosts contra humanos, mas ela usa uma metáfora que está dentro da natureza dela de rancheira, supostamente, então isso é muito legal.

[Thiago Lee] Falando nisso também, lá no episódio 14, naquele que falamos sobre a narrativa de Logan no filme, nós demos vários exemplos muito legais de diálogos primorosos que eles usam no filme e lá no episódio 23, a gente fala também um pouco disso, sobre o diálogo, etc.

Uma coisa bem interessante sobre diálogos é que uma obra muito boa sem diálogos incríveis, pode não ser memorável, enquanto uma obra não necessariamente excepcional pode se tornar memorável caso tenha ótimos diálogos, vide várias citações de filmes que estão na cultura pop, que o pessoal usar em camiseta, em quadro e tal, que às vezes são filmes que nem são incríveis, as vezes o pessoal nem viu o filme, mas sabe da citação. Eu lembro, por exemplo, de uma vez daquele filme, O Duro de Matar, com Bruce Willis, que aqui tem aquela citação “Yippee ki-yay, motherfucker!”, que ele usa, e depois, mesmo antes de eu assistir ao filme, eu já ouvia meus amigos, que tinham visto o filme, usando isso na escola o tempo todo. Tinha até uma galera que estava usando isso, mas nem tinha visto o filme, nem sabia de onde era, só era uma citação legal, entendeu? 

[Jana Bianchi] E às vezes o diálogo nem precisa ter muito significado, mas assim, às vezes ele ambienta ou é tão complementar a trama. Por exemplo, “Hasta la vista, baby”, sabe? Porque tem um contexto dentro do Exterminador do Futuro 2, mas a frase, por si só, dane-se, é uma frase que não quer dizer nada, mas dentro do contexto, ela se torna uma frase icônica.

[Thiago Lee] O Tarantino faz muito isso também, né? Pulp Fiction é lotado de citações desse tipo, como as do Samuel Jackson, várias que no contexto fazem muito sentido, mas sozinhas não fazem tanto.

[Jana Bianchi] Sim, a gente também tem os grandes os grandes monólogos do cinema, como o do “lágrimas na chuva” e tal, que apesar de não ser diálogo, monólogo é outra questão, tem totalmente essa aplicação de muitas coisas do diálogo. Então assim, por exemplo, no monólogo, jamais uma pessoa na vida real vai sentar e fazer um monólogo maravilhoso que, nossa, a pessoa pensou uma palavra atrás da outra cada palavra, cada palavra no lugar. É claro que não. Só que tipo, na ficção a gente quer isso, na arte funciona, é muito mais legal que seja assim incrível, do que seja um diálogo ou um monólogo tosco.

[Thiago Lee] Agora, só para finalizar a questão do diálogo, eu queria só dar um exemplo aqui de diálogo, voltado para o Deuses Americanos, que eu falei antes, e a gente vai embora para encerramento, mas queremos feedbacks de vocês para outros episódios como esse. Mas o diálogo aqui é bem curto, que naquela mesma cena que eu falei mais cedo, o Shadow está na prisão, na entrevista carcerária lá que está decidindo se vai soltar ele ou não, e aí começa assim:

Um mês antes da data prevista para sua liberação, Shadow estava sentado em uma sala fria, de frente para um homem baixo com uma marca de nascença avermelhada na testa. O homem estava com a ficha de Shadow aberta na mesa. A caneta em sua mão estava com a ponta bem mastigada.

— Está com frio, Shadow?

— Sim — respondeu ele. — Um pouco.

O homem deu de ombros.

— O sistema é assim. Só ligam as fornalhas no primeiro dia de dezembro. E desligam em primeiro de março. Não sou eu quem cria as regras.”

Então assim, ele está falando para o Shadow que está frio porque não ligaram as fornalhas, mas na verdade eles tá dizendo sobre estar se sentindo mal, estar sofrendo na prisão. Aí o Shadow responde que um pouco, então ele devolve com um, “Não sou quem cria as regras”, tipo um “aceite que é assim mesmo”. Ou seja, o personagem falou da ventilação da prisão, mas o autor, o Neil Gaiman, usou esse dialogozinho para falar da condição do próprio Shadow e do carcerário lá, como algo do tipo “eu só trabalho aqui”.

É um trechinho pequeno que carrega muito significado.

[Jana Bianchi] Sim, fala inclusive um pouco dos dois personagens, você já pensa nesse cara não como um cara todo bondoso do tipo “vou ver o que posso fazer por você”.

[Thiago Lee] Isso, e ao mesmo tempo também não é um cara que você acha que quer ativamente ferrar com o Shadow, até porque depois ele solta o cara depois de outras perguntas. O diálogo inteiro é bem legal, quem tiver o livro em casa e quiser revisitar essa cena toda é muito legal. Você lê a primeira vez e você acha que a cena é só para liberar Shadow da prisão, mas se você relê a cena, ontem mesmo eu reli umas três ou quatro vezes, você vê que ela inteira é cheia de subtexto. Só não vou ler ela aqui inteira porque é bem longa.

[Jana Bianchi rindo] Neil Gaiman sendo Neil Gaiman, né.

[Thiago Lee] Bem, acho que terminamos aqui. Acho que pareceu curto, mas se fosse para falar tudo sobre diálogo ficaríamos umas 50 horas aqui.

[Jana Bianchi] Sim. Ah, e para quem ainda não viu no começo do mês, eu publiquei aí no site do Curta Ficção um artigo, em texto mesmo, sobre como pontuar diálogos e montei um PDF aqui também para quem quiser baixar para o seu computador e guardar com suas coisas. O link está aqui:

(http://curtaficcao.blubrry.com/2018/05/10/dica-de-escrita-como-pontuar-dialogos/)

[Thiago Lee] Então comentem aí o que vocês acharam do episódio, se vocês gostaram desse tipo de episódio mais técnico, se preferem os de entrevistas com convidados ou mesmo se querem mais artigos em texto com dicas de escrita. Inclusive, a primeira publicação do site foi um artigo sobre um método de estruturar sua narrativa:

(http://curtaficcao.blubrry.com/2016/09/21/dica-de-escrita-como-estruturar-sua-historia-metodo-dos-sete-pontos/)

Lembrando mais uma vez que, se você curte o nosso conteúdo, existem três jeitos de apoiar a gente. O primeiro é recomendado o Curta Ficção mandando o episódio no WhatsApp, compartilhando nas redes sociais ou falando para os seus amigos seguirem e ouvirem a gente, o outro é avaliando podcast no seus agregadores de podcast, nós estamos em todos eles, inclusive no Spotify, ou apoiando nosso financiamento coletivo no Catarse (https://www.catarse.me/curtaficcao) ou no PicPay (picpay.me/curtaficcao). 

Nós vamos deixar todos links do que falamos na descrição do episódio.

[Jabás]

[Thiago Lee] Esse foi mais um episódio do Curta Ficção, o podcast de escrita que cabe no seu tempo.

Eu sou o Thiago Lee.

[Jana Bianchi] Eu sou a Jana Bianchi.

[Thiago Lee] Até a próxima.

[Vinheta de encerramento]