Transcrição referente ao episódio 017 do Curta Ficção, sobre “Narração em terceira pessoa”, que pode ser acessado neste link.
Transcrição por Ton Borges
[Thiago Lee] Começa agora mais um episódio do Curta Ficção, o podcast de escrita que cabe no seu tempo. Eu sou o Thiago Lee.
[Jana Bianchi] Eu sou a Jana Bianchi.
[Thiago Lee] E hoje continuamos o que começamos no episódio passado, falando sobre pontos de vista de narrativa.
[Vinheta]
[Thiago Lee] Continuamos hoje nossa série de tipos de narrativa, mais uma vez sem o Rodrigo.
[Jana e Lee tristes] Aaaaaaaaa…
[Thiago Lee] E dessa vez falando sobre narrativa em terceira pessoa. É o nosso segundo episódio dessa minissérie e os episódios são independentes, mas a gente vai deixar na descrição o link do programa sobre primeira pessoa para quem quiser acompanhar a série desde o começo, se tudo der certo, teremos outros episódios dessa série sobre narrativa com Rodrigo, espero.
[Jana e Lee felizes] Êêêêê!
[Thiago Lee] E também novas séries de episódios. Então, por favor, deixem seus comentários para sabermos se você gosta desse formato do programa, comenta aqui no site, nas redes sociais. Sinal de fumaça não, porque a gente não vai ver.
[Jana Bianchi] Pombos correio sim, a gente recebe.
[Thiago Lee] Fala que tipo de narradores você prefere, se é primeira pessoa ou terceira pessoa, se é terceira pessoa onisciente ou limitada, tanto como autores como leitores também, se difere na sua escrita, se você prefere escrever algum tipo narrador, como também prefere ler. Eu por exemplo, eu costumo escrever nos dois, tanto de primeira como terceira pessoa, acho que cada história pede seu estilo.
[Jana Bianchi] Pede seu narrador, né.
[Thiago Lee] Isso, eu acho que é possível sim escrever a mesma história com os dois estilos, mas são livros totalmente diferentes, são abordagens diferentes.
[Jana Bianchi] Exatamente.
Eu também, particularmente por alguma razão, eu prefiro em geral em terceira pessoa e eu escrevi muito tempo em terceira pessoa com uma certa resistência de escrever em primeira pessoa, mas agora estou começando a gostar. Mesmo quando eu tinha certa resistência eu tinha alguns contos que eu pensava, “Não! Esse conto tem que ser em primeira pessoa”, e escrevia, mas agora estou começando a gostar da primeira pessoa, então acho que também depende do narrador em si, se o narrador te empolga ao ponto de ficar legal, acho que fica bem mais fácil de escrever do que quando você está escrevendo com um narrador que não é exatamente o narrador certo
[Thiago Lee] E eu até lembrei de um livro mais novo que eu li Haruki Murakami, o Romancista Como Vocação, que ele fala que ele começou com a primeira pessoa, só que aí depois ele queria meio que expandir um pouco as histórias que ele contava e isso só era possível com a terceira pessoa. Então ele começou com a primeira e daí partiu para a terceira pessoa.
É bacana, acho que depende muito, não tem certo e errado. Acho que são dois lados da mesma moeda.
[Jana Bianchi] Eu achei engraçado o que ele fala no livro assim, que depois que ele escreveu o primeiro livro em terceira pessoa, ele falou “Eu posso escrever qualquer coisa!”. Ele tipo, teve um momento de “Óóóó! ”, um momento de epifania.
[Thiago Lee] Bom, em oposição a primeira pessoa, a narração em terceira pessoa é o narrador que apenas assiste a história de fora sem participar dela ou participando, na verdade. O narrador em terceira pessoa pode ser chamado também de “narrador observador” ou “narrador onisciente”, dependendo também de alguma série de escolhas narrativas mais específicas.
E seguindo o formato do episódio passado, abordando as vantagens e desvantagens dessa pessoa mais para frente, mas de modo simples assim, essa narrativa dá mais liberdade para escritor abordar diferentes núcleos e pontos de vista e torna as passagens descrição um pouco mais naturais em comparação com a primeira pessoa.
[Jana Bianchi] Como o Lee falou, o narrador pode ser onisciente ou tem conhecimento limitado. O ponto de vista ele é importante para qualquer tipo de narrativa, é óbvio né, seja em primeira ou terceira, mas em terceira pessoa a amplitude de conhecimento que o seu narrador pode ter ou não, no caso, é tão grande que é muito importante definir de antemão se você utilizar um discurso direto, que é um narrador onisciente, ou um discurso indireto, que seria o narrador observador. Para você, é bom você já ter isso de antecedência para evitar confusão. Essa ferramenta, narrador em si, especialmente na narrativa de terceira pessoa, é tão importante que a gente vai fazer um episódio, a gente pretende fazer um episódio sobre isso mais pra frente, como nós dissemos, quando o Rodrigo voltar, porque ele já fez uns cursos legais, ele vai poder acrescentar pra caramba.
[Thiago Lee] Seguindo a estrutura do episódio anterior, começando a falar das vantagens de se utilizar o narrador em terceira pessoa. Em primeiro lugar é a amplitude de conhecimento do narrador. A principal característica da terceira pessoa é a amplitude do conhecimento da trama que o narrador tem é quase que ilimitada. Assim, tudo depende do ponto de vista e do tipo de discurso, direto ou indireto, que você vai escolher. Mas ainda assim é mais amplo do que uma primeira pessoa, mesmo o discurso livre indireto, no qual o seu narrador tem influência da voz e do conhecimento do seu personagem, você pode tomar “liberdades” de escrever coisas acontecendo em um microcosmo. Por exemplo, detalhando as características de uma sala em que seu personagem está.
Como a gente já disse antes, vamos falar isso em um episódio futuro e mais detalhado, mas quem quiser saber mais pode procurar o livro “Como funciona a ficção”, de James Wood. Acho até que nós já mencionamos esse livro aqui no podcast antes.
[Jana Bianchi] Acho que a gente já mencionou várias vezes, porque esse livro é muito legal, é um livrinho pequenininho, não sei se ele ainda existe aí no mercado, mas ele é baratinho, pelo menos era na Amazon, deve achar fácil aí. Procurem porque é um livrinho com vários tópicos interessantes sobre escrita.
Seguindo isso que o Lee falou da amplitude do conhecimento do narrador, para o pessoal da fantasia e da ficção científica essa amplitude é muito útil na hora de apresentar o universo. Porque narrado em terceira pessoa, você tem muito mais liberdade de usar um sumário, ou seja, não os diálogos, para contar sobre o passado de uma civilização, sobre a geografia de um lugar ou até mesmo sobre o funcionamento de uma tecnologia inventada ou de uma tecnologia verdadeira, no caso das discussões científicas, mesmo que seus personagens todos sejam ignorantes em qualquer um desses temas. Então assim, é uma vantagem, claro, porque você pode apresentar informações que numa narrativa em primeira pessoa ficaria inverossímil ou seu narrador ou seu personagem saber, por exemplo, você está narrando um negócio que seus personagens são homens de Neandertal. Você não vai poder falar que eles viviam num vale, se for narrado em primeira pessoa, obviamente, tipo, “a gente vivia num vale que ficava onde no futuro vai ser o Brasil”, mas em terceira pessoa você tem essa liberdade, que é uma vantagem, como disse.
Mas você precisa de um cuidado redobrado para não se empolgar diante dessa possibilidade e acabar caindo no excesso de descrição que já mencionou várias vezes aqui no podcast. Em especial no episódio 07 em que a gente gravou junto com Eric Novello sobre construções de universo.
Outro ponto positivo da narrativa em terceira pessoa é a neutralidade da narrativa, na verdade, quando eu fui dar um título para este tópico eu fiquei em dúvida, mas acho que a neutralidade narrativa é boa, vou tentar explicar aqui, porque eu quero falar sobre a possibilidade de que a terceira pessoa te dá de você usar uma narrativa bem seca, bem simples no sumário para então destacar não só a sua história, que está acontecendo, vamos dizer assim, por trás da narrativa, como também destacar as vozes de seus personagens através do diálogo. Assim, na minha opinião um autor que faz isso bem é o Brandon Sanderson que tem uma narrativa super simples, tão simples quanto possível, ele não tem nenhuma firula.
Não que ela seja melhor ou pior que uma narrativa mais rebuscada, mas em Mistborn, por exemplo, ela traz muitos benefícios, depois que eu li o livro eu pensei nisso. Porque assim, a construção do mundo e do sistema de magia, que tem na série é muito complexa e a gente tem muitos personagens, é uma gangue de personagens, cada um com uma personalidade bem definida. Então, o peso do livro que se concentra nesses dois pontos, personagens e no background relativo a construção do Universo e do sistema de magia, é amenizado por causa dessa narrativa mais simples e mais corrida. Apesar de ser um livro que poderia ser pesadão, cheio de informação e meio tenso, ele super acessível. Eu peguei o livro, um tijolão, e eu li super rápido. Então em primeira pessoa, talvez a voz do personagem narrador pudesse atrapalhar essa apresentação da criação do mundo e apresentação dos personagens, porque ela já traz a voz bem usada, claro que um personagem pode ter uma voz em que ele é muito seco, mas isso é um caso específico. Em geral o personagem vai ter uma voz e essa voz ela pode acabar infiltrando na história e causando meio que ruídos, né.
[Thiago Lee] É, na verdade tudo vai se resumir na escolha do estilo. O estilo do Sanderson é uma narração mais seca, com uma construção de mundo e de narrativa mais complexa. Se o autor quiser fazer uma outra camada de narrativa que é o fluxo de pensamento do personagem e focar menos na narrativa, não há nada de errado nisso. Basicamente se resume a escolha de estilo próprio dele e como ele quer contar essa história, qual o objetivo dele. As histórias que são centradas em personagens, elas funcionam muito bem em primeira pessoa, mas também em terceira, principalmente se for mais limitado, discurso direto, um pouco menos onisciente, o onisciente foca mais na história. Já as histórias que são mais focadas na trama são quase que exclusivamente em terceira pessoa porque você pode focar no futuro, no passado, em outros personagens. É como a gente falou no começo do episódio: tudo é escolha do estilo, tipo, é você saber o seu estilo e descobrir seu estilo, sabendo como você quer contar essa história. Você quer contar focado no personagem? Focado na trama? Uma mistura dos dois? Enfim, tudo vai depender de você. Inclusive essa simplicidade da narrativa do Brandon Sanderson é um dos principais tópicos da famosa “treta” entre o Brandon Sanderson e o Patrick Rothfuss, de O Nome do Vento, e lá vamos nós de novo mencionando o Patrick Rothfuss enquanto o Rodrigo não está aqui, porque quando os gatos saem, os ratos fazem a festa.
[Jana Bianchi rindo] Ele vai voltar e o podcast vai se chamar “Curta Rothfuss”
[Thiago Lee rindo] “Curta O Nome do Vento”, né.
O Rodrigo ama essa treta, ele não tá aqui, e em especial ele adora falar, entre muitas aspas, “bem” do Patrick Rothfuss, porque assim, se você já leu os dois autores, é legal você tentar enxergar como é que a primeira pessoa do O Nome do Vento as vezes torna a história truncada, considerando que a própria narrativa em terceira pessoa dele já é mais rebuscada, mas assim, gosto muito do livro, mas ele é uma literatura diferente do Mistborn, por exemplo.
[Jana Bianchi] Bom, e aí falando das desvantagens da terceira pessoa, uma delas é: dificuldade de manter o mistério sem trair o leitor.
Acho que esse é um ponto mais delicado. Dependendo da história, uma narração em terceira pessoa pode acabar deixando, obviamente, de acordo com o desfecho e com a maneira como o desfecho levado, pode acabar deixando o leitor com a sensação de que foi traído depois da virada da narrativa, depois que ela é revelada. Claro que isso não significa que uma história em terceira pessoa não possa ter plot twist, obvio que não, mas nesse caso o autor precisa garantir que os foreshadowings e as dicas são suficientes e estão bem colocadas para que o leitor depois pense, “Caramba! O narrador estava me apontando isso, o narrador sabia isso, ele estava falando e eu não percebi“, e não, “ O narrador escondeu de mim essas coisas, maldito!”.
A gente vai falar mais de Harry Potter nos exemplos, mais um dos grandes trunfos da série é maneira primorosa com que ela plantou dicas sobre as principais viradas da história sem revelar demais, ao mesmo tempo em que deixa aquela impressão de que o narrador escondia informação importante do leitor e de repente, tira do chapéu uma informação que você fala, “Meu, de onde isso veio?! Porque que o narrador não mencionou isso em nenhum momento?!”. Então a gente vai falar um pouco mais para frente do Harry, mas isso é uma certa desvantagem da terceira pessoa que na primeira pessoa, se seu narrador é um narrador não confiável ou de fato não está envolvido na reviravolta, se ele não sabe o que está acontecendo, não tem essa sensação de traição, pois o personagem narrador está descobrindo junto com o leitor.
[Thiago Lee] Mas voltando ao tópico, lembrando que essa vantagem pode ser amenizada se a terceira pessoa for limitada e não onisciente, porque temos várias formas de contar uma história em terceira pessoa. As duas principais são “limitada” e “onisciente”. Limitada focada em um personagem e onisciente, você está vendo tudo de cima, é tipo um deus, ele conta o que está acontecendo sem entrar na cabeça das pessoas ou entrando bem pouco na cabeça das pessoas. Nesse caso, você precisa garantir que o personagem que seu ponto de vista acompanha não sabia as informações que serão reveladas na grande virada, mas a necessidade de fazer foreshadowing continua. Inclusive, é importante que nesse caso as dicas sejam coisas que seus personagens notem por eles próprios, por exemplo no meu livro, Réquiem para Liberdade, ele é em terceira pessoa limitada ou seja, eu acompanho a cabeça do Marko, que o protagonista, eu planto as dicas durante o livro e a reviravolta no final ele não sabe. Assim, as dicas todas ele viu, mas ele só foi juntar as peças no fim do livro e o leitor acompanha essa descoberta dele. Eu acho que é mais ou menos meio que inconscientemente eu tenha pego essa forma de contar da J.K. Rowling, quem sabe né.
[Jana Bianchi] Acho que é o exemplo mais contemporâneo disso.
[Thiago Lee] É, e o protagonista não sabe, mas ele vai no final juntar as peças todas.
Também em oposição à primeira pessoa, a terceira pessoa é bem difícil ter um narrador não confiável. É possível sim, em especialmente audiovisual, que se tem a imagem e o som te mostrando as coisas, é possível você modificar um pouco as formas de contar para não ter essa narração não confiável, mas na literatura é bem raro e complicado de fazer, pelo menos sem causar uma sensação de traição quando o plot é revelado, porque se você está acompanhando as coisas na terceira pessoa com um narrador que sabe das coisas e ele não te contar, pode ser meio desconfortável no final das contas.
[Jana Bianchi] Tipo um, “SUPRESA!”. É quase um deus ex machina, né.
[Thiago Lee] Isso, isso. Vai depender muito de como você contar, mas pode acabar caindo nesse ponto.
Inclusive o narrador onisciente, ele tem saído de moda na literatura contemporânea nas últimas décadas. Acho que na literatura clássica brasileira tem muito disso, narrador onisciente, e com o tempo foi passando. Acho que está sendo cada vez menos usado e assim, é claro que não impossibilita ninguém de utilizar, obviamente, mas é só um ponto saber que não é tão usado quanto antigamente. Hoje em dia a narração “limitada” está sendo cada vez mais comum.
[Jana Bianchi] Inclusive no livro do James Wood que a gente mencionou, o “Como Funciona a Ficção”, tem alguns tópicos sobre isso também, então lá tem mais informações sobre essa obsolescência do narrador onisciente, que claro, não significa que você não pode usar.
[Thiago Lee] Próxima desvantagem do narrador em terceira pessoa é a necessidade de você usar recursos narrativos para aproximar o leitor do personagem. Por exemplo, no primeiro episódio falamos sobre primeira pessoa, falamos que uma das vantagens da primeira pessoa é poder estar na cabeça de pelo menos um dos personagens, dependendo do número de pontos de vista, e ainda assim o que se passa na cabeça do personagem, que não são pontos de vistas, precisa ser externalizado de alguma outra maneira. O exemplo que a gente deu lá foi a “penseira” do Harry Potter, em que ele vê o ponto de vista de outras pessoas, através desse artifício que ele utiliza sem sair da cabeça do Harry. E já que a primeira pessoa não tem acesso à cabeça dos outros personagens, fica difícil você contar outras histórias. No caso da terceira pessoa, a gente não tem acesso à cabeça de nenhum personagem direito e mesmo os pensamentos do personagem dono do ponto de vista limitado têm que ser inseridos como “pensou fulano”. Você tem como saber o que acontece, mas não como se sente tanto quanto você consegue na primeira pessoa
[Jana Bianchi] É e na terceira pessoa, o solilóquio, que é quando o personagem fica falando com ele mesmo ou pensando sozinho, não pode ser utilizado por grandes extensões de tempo da narrativa, você não pode ficar um capítulo inteiro em solilóquio de um personagem específico em terceira pessoa. Você até pode colocar uma reflexão, tipo, “fulano pensou”, “fulana achava”, mas nesse caso o pensamento fica quase que intruso no meio da narrativa. Então é uma coisa que ela precisa ser usada com um certo cuidado.
A narrativa livre direta ajuda bastante nisso, já que você consegue inserir algumas opiniões e até expressões do seu personagem no sumário, mas também precisa utilizar esse recurso com cuidado ou pelo menos com bastante conhecimento do que a gente está fazendo. Se vocês ouviram em um dos episódios passados, em que a gente comentou alguns contos que participaram do primeiro concurso de ficção relâmpago do Curta, a gente mencionou que um dos contos selecionados como um dos melhores contos, ele era em primeira pessoa e tinha um certo exagero de expressões, um excesso de jargões, de expressões repetidas que o personagem usava, a mesma coisa em terceira em discurso livre indireto.
[Thiago Lee] Lembrando que é preciso tomar cuidado para você não ficar pulando do ponto de vista de um personagem para o outro na mesma cena. Se você está limitado a cabeça de um personagem, pulou o parágrafo, ou seja, pulou para a cabeça do próximo personagem, isso pode confundir o leitor. Isso é muito usado sim, principalmente no narrador onisciente, mas o que se vê bastante são autores inexperientes pulando de cabeça em cabeça sem saber o que está fazendo isso, esse é que é o problema.
[Jana Bianchi] A gente vai falar bastante disso no episódio sobre pontos de vistas, mas isso é muito importante, uma das coisas que a gente vê o tempo todo e digo mais, é uma coisa que faz muito inconscientemente porque eu, depois que eu falo, “tenho que prestar atenção no ponto de vista dos meus personagens”, eu bobeio um segundo e quando eu vou ver, eu estou mudando do ponto de vista sem querer, é impressionante.
[Thiago Lee] Eu digo mais, eu já mudei de terceira pessoa para a primeira pessoa, e vice-versa, no mesmo capítulo, tipo assim, “ele faz isso, ele faz isso…. eu faço isso”, então acontece, é normal. Mas assim, na revisão claro que você corta todas essas coisas e se você escolhe em escrever uma terceira pessoa limitada, então fica naquele personagem, limite-se. Se você vou fazer onisciente, beleza, aprenda a escrever onisciente e escreve onisciente, mas se você optar por uma terceira pessoa limitada focada no personagem X, não pode escrever sobre Y, por exemplo, se seu personagem chamar João, então “João pensou isso e aquilo”, mas você escreve também “Ricardo pensou isso e aquilo”, você acabou de pular para cabeça do outro personagem, tome cuidado com isso. Fora raras exceções, você não pode ficar contando coisas que o personagem não saiba, que ele não tenha visto, não pode ficar entrando na cabeça do personagem sem pelo menos quebrar a cena, quebrar o capítulo, fazer com que o leitor saiba quem, tipo, “acabou aqui vai e vai começar outra coisa”, né. Mudar o ponto de vista meio da prosa é um assunto delicado, se você não tem experiência, nem tente fazer isso.
[Jana Bianchi] Inclusive, foi um retorno que eu tive sobre a primeira versão, a independente que saiu mesmo, do Lobo de Rua.
[Thiago Lee sussurrando] … lobo de rua…
[Jana Bianchi rindo] Quem não sabe do que a gente tá falando, a gente vai dar um jabazinho no final.
[Thiago Lee] Bom, no episódio como no anterior, a gente queria trazer alguns exemplos de livros que são escritos em terceira pessoa e que tem algum detalhe interessante para quem gente possa aprender com eles. Então, dando o primeiro exemplo que eu vou trazer aqui, é o Código Da Vinci do Dan Brown, livro famoso, vendeu milhões de cópias e, como em vários livros mainstream que tem por aí, que vendem muito, ele é um narrador onisciente. Demos até uma pesquisada e tal, que muitos dos livros que são muito famosos, eles têm esse narrador onisciente porque o narrador onisciente é mais fácil de ser entendido, como ele apenas narra o que acontece, é uma literatura um pouco mais simples de se entender.
[Jana Bianchi] É, como se ele estivesse assistindo.
[Thiago Lee] Isso, é como se estivesse vendo, tem uma câmera em cima do que está acontecendo.
Raramente o narrador do Código da Vinci entra na mente dos personagens ou analisa como estão se sentindo. Ele basicamente narra os fatos, mais preocupado em contar o que acontece, como se realmente tivesse uma câmera em cima da cena, e ele muda os pontos de vistas frequentemente. Normalmente, ele quebra a cena para isso, mas como a narrativa é bem simples, ele não faz um fluxo de pensamento, ele faz coisas como por exemplo, o Robert que é o protagonista, né, então é tipo “Robert pensou isso” ou “o Robert falou tal coisa”, ou seja, ele descreve um pouquinho como ele estava sentindo, mas não entra num fluxo de pensamento, como é algo bem simples assim, acaba que ele não confunde o leitor, e você tem a leitura bem ágil, podem ir até essas mudanças de pontos de vista, porque elas são bem singelas.
[Jana Bianchi] Em oposição a essa narrativa bem distante do personagem, o outro exemplo que eu trouxe aqui é o Exorcismo, amores e uma dose de blues, a gente já falou do livro aqui no episódio com o autor, lá com o Eric, o episódio 07, e nesse livro o Eric usa o discurso livre indireto do ponto de vista do Tiago Boanerges, que é o protagonista. Ele é bem comedido, na verdade, no uso do discurso livre indireto, mas tem ali algumas coisinhas, então desde o começo dá para perceber que o narrador tem toques marcados da personalidade das opiniões do protagonista. Por exemplo, acho que logo na primeira página, ele fala “Tiago sabia que nem a quantidade de copos descartáveis na máquina de café do Concelho de Hórus era determinada ao acaso”. Embora ele use aqui o “sabia”, que é um discurso direto, essa expressão, “a quantidade de copos descartáveis na máquina de café”, isso não é do narrador, entendeu? Isso é algo que que o Tiago pensa, então isso meio que pertence a personalidade dele. Ou em outro momento que ele fala “pelo visto, cortar frequentadores sem grana trouxe bons resultados”, isso poderia muito bem ser um diálogo, né, mas na verdade é dentro do sumário, então “grana”, pelo visto, significa uma opinião ali do personagem que ele está emitindo enquanto o narrador está narrando.
Para quem ainda não conhece o livro, a gente deixa aqui o link para um episódio sobre esse livro no Caixa de Histórias, que é um podcast muito legal que começa com uma narração profissional do Paulo Carvalho, que é o dono do Caixa de Histórias, e a gente também vai deixar o link da editora que tem uma amostra para vocês lerem o começo do o Exorcismo, amores e uma dose de blues e perceberem essas nuances.
[Thiago Lee] E isso é interessante em um livro como esse, porque na história o mundo mágico é conhecido por todo mundo, inclusive pelo próprio protagonista Tiago, então é possível que conhecimentos dele sejam passados para o leitor através do sumário sem precisar de diálogo. Seria um pouco mais complicado explicar a mecânica do universo no discurso livre indireto se o personagem não soubesse nada do que está acontecendo ou do que será apresentado.
O próximo exemplo que eu queria dar, que particularmente eu gosto muito, que é As Mentiras de Locke Lamora, do Scott Lynch. Esse caso é bem peculiar porque assim, apesar de ser uma fantasia, acho que renascentista talvez, se passa em um mundo criado quase “italiano” assim. Você já leu o livro, Jana?
[Jana Bianchi] Não, mas eu sei a premissa.
[Thiago Lee] Então, aí o narrador é onisciente, mas o autor usa diversos recursos narrativos que são bem “curiosos” na narração. Primeiro, é que todas as cenas, pelo menos as cenas de ação, digamos assim, ele começa com “a câmera” afastada, descrevendo o que está acontecendo na cena, onde estão os personagens, com alguma coisa um pouco mais intrigante para poder dar o gancho ao leitor e é meio que uma maneira cinematográfica de contar as coisas, depois que ele aproxima a câmera e mostra um pouco das reações dos personagens. Então isso já é uma mudança um pouco curiosa e também ele muda o ponto de vista no meio da cena. Ele está falando sobre o Locke, depois ele vai para o Jean, enfim, ele vai mudando, só que é algo bem gradual, ele meio que “passa o bastão” de um personagem para o outro de uma forma que não confunde o leitor, mas também é uma forma um pouco incomum.
Outra coisa que eu acho muito interessante, pelo menos para mim, na minha opinião pessoal é um dos pontos fortes do livro, como os protagonistas são vigaristas, normalmente eles estão querendo roubar alguma coisa ou passar a perna em alguém, o narrador esconde tudo do leitor e são informações que os personagens conhecem. Contradizendo que a gente falou mais cedo, de que é difícil você esconder coisas do leitor, quando você é a terceira pessoa, o Scott Lynch faz exatamente isso o livro inteiro.
[Jana Bianchi] É, nada é uma regra inquebrável e, tipo, pessoas já muito experientes ou pelo menos que estudaram muito, conseguem fazer. Por isso é interessante ler com essa visão, como eu não li ainda, eu mesma vou ler com esse cuidado.
[Thiago Lee] Sim e ele vai revelando aos poucos, porque a maioria dos capítulos, em especial os capítulos em que eles estão colocando em ação o plano deles, os capítulos que são entre as cenas de ação nem tanto, mas quando eles vão fazer tal coisa e aí as quebras de cena dentro do capítulo, elas não são cronológicas. Não é tipo, “Beleza, vamos lá fazer isso, deu errado, depois resolveu e conclusão”, não. Eles começam um capítulo com, “onde tudo deu errado”, porque sempre alguma coisa vai dar errado, nem tudo dá 100% certo, e aí ele pausa, volta como tudo começou, depois como foi que chegou ao ponto em que deu errado, aí pula um pouco no tempo, porque a gente já sabe onde foi que deu errado, e depois resolve.
[Jana Bianchi] Tipo in media res em cada cena, né.
[Thiago Lee] Isso, em cada cena ele começa pelo meio, depois volta, conta, pula e vai para o final.
Assim pra mim praticamente funcionou muito bem. Eu não conseguia parar de ler porque começava o capítulo e já era tipo, “Eita porra, deu merda!”, aí não consigo parar de ler no meio do capítulo. Mas assim, conheço gente que falou “não consegui terminar de ler porque a narrativa meio que estava gratuita, ficava meio que escondendo coisa que os personagens sabiam”, mas enfim,, pra mim funcionou, eu acho que foi um sucesso pelo menos pra mim.
[Jana Bianchi] É, mas ele foi um sucesso comercial também, no geral, e de crítica.
Bom o outro exemplo aqui, que nós até já mencionamos várias vezes nesse episódio e mencionamos no episódio passado, sobre narração em primeira pessoa, que é a série Harry Potter, em que narrativa, em terceira pessoa, é BEM direta, com um narrador que tem pouquíssima voz própria, na verdade tem um certo sarcasmo e um humor britânico em algumas passagens, mas em geral a narrativa é bem objetiva. Então tudo que a gente sabe dos pensamentos do Harry e outros personagens é contado pelo narrador para a gente, ele descreve “o Harry se sente assim”, “o Rony se sente assim”, “a Hermione se sente assim”, etc, bem direto.
Comentei isso já no episódio de primeira pessoa, mas vale relembrar que o ponto de vista quase nunca sai do trio ali, mas a autora foi muito esperta na hora de usar aqueles recursos para encarnar a cabeça de outros personagens, narrar coisas de outros núcleos ou de outras épocas. Então tem a “penseira”, ou os personagens executam alguma coisa atrás da porta e ficam sabendo alguma informação que o Dumbledore está conversando com o Snape, ou os sonhos e tudo mais.
[Thiago Lee] E já fazendo uma ponte com o que a gente mencionou antes, sobre o world building, é bom lembrar que a partir do momento em que Rowling escolhe um ponto de vista limitado e o Harry como protagonista, que é alguém que não tem conhecimento do mundo mágico, ela não pode ficar dando altas explicações sobre o universo no sumário. A gente vai aprendendo junto com ele e como o Harry não sabe aquelas coisas, ele está descobrindo junto. Então essas ferramentas que a Jana citou são bem importantes dentro do contexto de Harry Potter para permitir explicações verossímeis e, minha visão também, é muito importante para o leitor, pelo menos quando foi lançado, era o leitor infanto-juvenil, ir descobrindo esse mundo mágico e ficando aficionado com descobrir cada vez mais coisas como o Harry também ia descobrindo cada vez mais coisas a cada ano que passava.
[Jana Bianchi] Sim, aos poucos e em especial pela visão do Rony que já é de família bruxa, ou pelas explicações dos professores, mas vocês podem reparar que não tem grandes explicações descritas no sumário tipo, “no mundo bruxo era assim que funcionava”. Ou Harry já ouviu aquilo de alguém e o narrador está reproduzindo algo que ele soube ou é de fato um diálogo direto, ou um professor dando uma aula, uma explicação e tudo mais. Isso aí é interessante de perceber.
[Thiago Lee] Por isso que é interessante você colocar personagens diversos, com experiências diversas, na sua história para você poder passear por esses problemas de como contar uma certa informação, então se você tem, por exemplo, um professor no mundo de Harry Potter, ele vai contar uma informação que o Harry não sabe e que nem o Rony sabe. O Rony vai contar uma informação que o Harry não sabe e às vezes o professor não saiba. Tipo, você tem esse personagem diversos que vão trazer as informações, criando sua história e criando conflito, o que eu acho que, seja a primeira pessoa ou a terceira pessoa limitada ou onisciente, é isso que vai enriquecer a sua trama e enriquecer a forma em que os personagens interagem entre si.
E acho assim a gente fecha episódio, chegou nosso tempo, e como a gente fala sempre, comentem aí no site para os outros ouvintes poderem ler, poderem responder e poderem comentar e virar uma outra conversa um pouquinho maior, mas se vocês quiserem conversar com a gente ou mandar sugestões de pauta, que estamos sempre aceitando, mande um email no contato@curtaficcao.com.br ou então deixa um tuite no @curtaficcao ou um inbox na nossa página no Facebook que é “Podcast Curta Ficção”.
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Nós vamos deixar todos links do que falamos na descrição do episódio.
[Jabás]
[Thiago Lee] E esse foi mais um episódio do Curta Ficção, o podcast de escrita que cabe no seu tempo.
Eu sou o Thiago Lee.
[Jana Bianchi] Eu sou a Jana Bianchi.
[Thiago Lee rindo] Até a próxima e a gente promete que no próximo episódio o Rodrigo vai estar de volta!
[Vinheta de encerramento]