Transcrição referente ao episódio S01E05 do A história além da história: Mutações, que pode ser acessado clicando neste link.
Transcrição por Ton Borges
[Vinheta de Abertura]
[Convidada] Quando eu era criança, tive muita dificuldade de aprender a ler e um dos meus maiores medos era não conseguir ler. Eu tinha muito medo de não conseguir ler, acho que principalmente por causa disso, por ser filha de professores, então a cobrança sempre foi grande. E aí na época eu tinha dificuldade de ler, mas eu lembro que a minha mãe começou a me pagar para ler. Me pagava mesmo, ela me dava dinheiro para eu ler, só que aí eu comecei a gostar de ler, mas eu gostava de ganhar dinheiro também. Daí ela começou a sacar que eu estava gostando de ler, aí ela falou assim, “Não, agora chega. Agora você já conseguiu o que eu queria, você já entendeu que ler é bom, então não preciso pagar mais né?”, HAHAHAHA.
É uma história muito engraçada, porque eu acho que vale super a pena, tipo, “paguem para os seus filhos lerem” para aprenderem a gostar. É super engraçado isso, né? Porque imagina a cena: Você é professor, seu filho tem dificuldade de ler, você paga ele e, no final das contas, hoje eu trabalho com escrita. Então assim, é curioso HAHAHAHA.
[Thiago Lee] Uma boa história não termina no ponto final, ela continua na vida de cada um de nós. Eu bati um papo com a comunicadora Paula Assis sobre um livro bastante intimista que a fez lidar melhor com os próprios sentimentos. Eu sou o Thiago Lee e essa é a História Além da História.
[Paula Assis] Eu sou a Paula, eu sou mineira, mas moro em Campinas, eu sou “gateira” e ciclista e eu gosto de dizer que a minha formação é em “Comunicação” e a minha “deformação” é em literatura. Eu trabalho como redatora em agência de publicidade.
Eu escolhi o livro Mutações, da Liv Ullmann, foi um livro que eu li três vezes, foi o único livro que eu li três vezes, e das três vezes que eu li, ele sempre me surpreendeu de alguma forma. A primeira vez que eu li eu tinha 18 anos e ele já tinha sido publicada há 30 anos, é curioso porque meu lance com ele é que ele meio que me ensinou na prática a diferença entre solidão e solitude. Foram várias descobertas, eu não conhecia a Liv, eu conheci ela através do livro. Ela é atriz e diretora, ela foi casada com Ingmar Bergman, um cineasta famoso, mas eu só fui ficar sabendo disso por meio do livro.
Eu não sabia nem quem era ela, sabe? Eu li esse livro porque ele estava na estante de livros da minha mãe e aí eu vi a capa e me interessei pelo título e pela capa do livro que tinha uma foto dela, é uma daquelas fotos que não importa o ângulo que você está olhando, sempre parece que a pessoa está te olhando no fundo da alma. Ela é uma mulher super bonita, mas com um olhar muito melancólico e eu achei muito estranho, eu não era acostumada a ver uma cena assim.
E aí eu comecei a ler sem ter a menor ideia de quem era essa pessoa. Depois que eu li o livro e me apaixonei por ele, que eu fui buscando e aí sim eu fui assistir os filmes dela, para entender o que estava por trás daquilo tudo. Eu cheguei até ela pela literatura mesmo.
Então, essa época em que eu descobri o livro estava no terceiro ano…
[Thiago Lee] Paula era uma adolescente cheia de certezas quando leu Mutações pela primeira vez. E ver uma mulher tão bem-sucedida como a Liv Ulmann com tantos dilemas pessoais mexeu bastante com ela. É uma situação semelhante a quando a gente cresce e descobre que nossos pais e nossos ídolos são seres humanos que nem a gente.
[Paula Assis] … e naquela época a internet era bem ruim, só tinha um computador em casa, então a gente tinha que dividir o computador com todo mundo. Então o único jeito que eu tive de me alienar naquela época, a hora que eu não queria estudar, era lendo. Eu falo alienar, mas no fundo, leitura nunca é para alienar, né? Mas é porque a leitura era uma imersão na verdade, no caso desse livro foi uma fuga da realidade muito boa e gostosa de fazer.
Eu acho que é uma leitura que me permite ter uma percepção diferente do tempo. Era uma época, uns 12 anos atrás, que não tinha muito esse debate do lugar da mulher na sociedade igual tem hoje. Então ela discutia de uma forma muito franca sobre o lugar dela quanto mulher que era artista, que era mãe, que era esposa e todas as vulnerabilidades que ela tinha.
É muito curioso porque é muito ambivalente também. Você imagina uma mulher rica, branca, muito inteligente e bonita, mas ela tem muitas questões existenciais e ela é muito honesta mostrando tudo isso. Então na época eu fiquei surpresa com uma pessoa famosa escancarando tudo isso com tanta franqueza. Eu fiquei encantada com esse livro.
[Paula Assis] Aí imagina, eu com 18 anos pensando, “Ah, eu preciso escolher minha faculdade, eu vou ser isso, eu vou ser aquilo”, tendo a certeza absoluta que tudo vai dar certo e vai ser do jeito que eu imaginei, e uma mulher famosa, muito inteligente, muito bonita, sendo um poço de dilemas. Então aquilo foi um contato com uma humanidade universal feminina, igual eu te falei, a gente não tinha muita noção do que era feminismo naquela época, ninguém falava disso naquela época.
Ela fala muita questão de autoestima, de culpa, de maternidade e eu fico pensando, “Gente, eu li isso 12 anos atrás, ninguém falava disso, mas ela escreveu isso mais de 40 anos atrás”. Para mim, se na minha época foi uma surpresa encontrar esse tipo de leitura, eu fico imaginando como foi na época que ela publicou, o tanto que não deve ter sido bom ou ao mesmo tempo assustador para outras mulheres, porque eu não acho que é uma leitura de boa que todo mundo vai gostar. É uma leitura muito existencialista, mas ela casou com quem, né, como não seria existencialista?
Eu acho que esses questionamentos que ela faz sobre os papéis sociais que uma sendo mulher artista, mãe, esposa, que vai era muito entrevistada, naquela época, esses questionamentos e a estranheza com que ela falava disso, me deixava muito à vontade, porque eu me sentia esquisita também e gostava de escrever, então eu ficava, “Nossa, quero ser amiga dela. Acho que ela me entende”. Ou então quando ela falava do próprio casamento dela, com o Bergman, que era um casamento bem tumultuado, bem cheio de altos e baixos, então para o lado dela de quem escreve, ele parecia ser uma pessoa muito difícil e o fato de eles trabalharem juntos parece que também era algo que dificultava o casamento. Era curioso também ver isso de fora.
Eu acho que o que mais me identifiquei com ela foi na questão das ambivalências, porque ela amava muito uma coisa, mas aquilo também causava muitos estranhamentos, e eu li com 18 anos, eu era muito jovem e muito sem entender várias coisas do que eu estava sentindo, daí eu acho que na época eu não tinha muita consciência de que a vida era a máxima ambivalência. Então eu acho que quando a gente é adolescente, pelo menos essa é a lembrança que eu tenho, a gente tem muita certeza absoluta das coisas.
Quando eu li e tive mais contato com essa questão da ambivalência, de que uma coisa pode ser boa e ruim ao mesmo tempo, aquilo mexendo comigo, me deixando confuso, “Como assim ela não tem certeza das coisas que ela está sentindo?”. Foi meio que um click, certamente naquela idade eu não pensava essas coisas sobre a ambivalência da vida, acho que não é à toa que eu li três vezes e eu fui amadurecendo a cada leitura e entendendo o que fazia sentido em cada época que eu li.
E acho que o que mais me emocionou nesse livro é a sinceridade com que ela escreve, a franqueza dela. Eu escrevo desde de quando eu tinha uns 10 ou 11 anos, eu sempre gostei de escrever, eu acho que eu só passava de ano porque eu ganhava os concursos de poesia HAHAHAHA. Eu sempre fui muito sensível para escrever, eu escrevia muitos poemas, mas eu acho que tinha uma coisa com a sensibilidade que eu me sentia muito próxima dela e daquilo que ela estava sentindo. Eu acho que é justamente isso, era uma coisa de sentir.
Eu acho que foi por isso que eu gostei tanto desse livro, porque os sentimentos que ela estava escrevendo ali eram muito familiares.
[Thiago Lee] Através da autoanálise do outro, a gente consegue fazer uma análise de nós mesmos. E foi isso que Paula fez nas diversas vezes que leu o livro. Era como se a Liv fosse uma velha conhecida.
[Paula Assis] É uma leitura muito aconchegante assim, das três vezes que eu li eu conseguia pescar umas coisas diferentes que tinham muito a ver com as coisas que eu estava vivendo bem na época. Ela fala muito da solidão, de como a vida dela tinha essa coisa muito ambivalente, de que ela era uma atriz de filmes tinham críticas e que eram super aclamados e ela era muito bonita e era casada com um homem muito importante, mas ela sentia um vazio tremendo. Eu acho que era uma melancolia meio saudável e normal de quem é artista e de não se deslumbrar diante do sucesso. No final das contas ela estava sempre em uns dilemas e impasses de, quando ela estava trabalhando, ela estava longe da filha dela, por outro lado, quando ela estava com a filha dela, ela sentia uma sensação que deveria estar trabalhando.
É uma coisa muito comum na vida adulta, que a gente estranha e não se adequa muito ao tempo, é uma dificuldade de entender o que é errado e o que é certo. No final das contas, conforme vai passando o livro, e eu acho que o livro, para mim, é um exercício dela autoconhecimento, a minha leitura de si mesma, eu gosto de pensar que é quase uma legenda do inconsciente, aquilo parecia uma terapia e não lembro, eu acho que ela não deveria fazer terapia na época, mas aquilo funcionava como uma análise de si mesma. Como eu estava dizendo, conforme vai passando o livro, a gente vai percebendo que ela vai e enriquecendo interiormente e então vai se tornando mais amiga de si mesma, ou seja, ela se sente confortável em ter consciência de que ela não sabe de tudo e de que ela vai ter que viver com dúvidas.
Isso é muito legal porque quando falo que descobri um pouco sobre a diferença entre solidão e solitude, porque mesmo nos vazios dela a gente se sente tão à vontade e pensa, “Nossa, que pessoa tão humana e que escreve esses dilemas de maneira tão poética!”.
Eu não gosto de fazer essa comparação, porque não tem como comparar uma coisa com a outra, mas eu acho que quando a gente pensa em por exemplo, em Clarice Lispector, ela vai muito fundo e de repente ela pega um detalhezinho de uma coisa muito superficial, então parece um mergulho dentro da leitura, ora você vai lá no fundo, ora você respira. Então, assim, são ritmos diferentes, mas tem muito a ver com sentimento, eu acho muito denso, mas não é denso o tempo inteiro, ela dança em ritmos diferentes.
É muito legal uma coisa também que, por causa dela ser atriz e diretora, rola um pouco de metalinguagem nos vários níveis de arte em que ela trafega. Quem conhece e gosta do Bergman e quem sabe o tanto de psicanálise que tem ali, então assim, é tudo muito cheio de camadas e não só as coisas que ela escreve, também na própria vida que ela leva. Então quem não conhece o Bergman e não conhece a Liv Ullmann e sei lá, joga no Google e fica com a impressão de que, “Ah, é uma coisa muito intelectual” e até pode ser alguma coisa muito cult, mas no final das contas eram sentimentos tão humanos e ela fala de uma forma que para mim é tão simples, comparado aos filmes do Bergman que talvez não sejam muito simples.
Quando ela escreve, eu quase consigo entender como esse casamento aconteceu, mesmo sem conseguir entender muito. Algo do tipo, é porque são artistas muito literais, talvez. Eu entrei tanto no livro, que tinha horas que eu tinha a sensação de que eu estava vivendo aquilo, bem naqueles momentos em que ela estava sentada, escrevendo e tentando entender aquilo que ela estava sentindo. Eu acho que isso também é uma característica de quem tem o hábito de escrever livremente, fazer diário, acho que quem tem esse tipo de hábito tem mais afinidade com esse tipo de leitura.
O livro ele tem umas doses de mal-estar, mas você se sente tão à vontade com o mal-estar que ele não incomoda, por isso que eu gosto de dizer sobre esse entendimento da diferença entre solidão para solitude. Não é ruim, é agradável.
[Thiago Lee] E numa jornada de autoconhecimento tão intensa como essa, até mesmo o frio da Noruega se transportava para o inverno de Minas Gerais.
[Paula Assis] Eu lembro que eu li esse livro em uma poltrona da sala da minha casa e eu lembro que era inverno. Então eu estava cheia de casacos e super combinava com um livro, porque ela morava na Noruega. Lembro bem disso, de ler esse livro com roupas de inverno e pantufas, só faltava uma lareira. Era meio que entrar no mundo em que a autora está.
Outra lembrança que eu tenho também é que tem uma parte no livro em que ela já tinha se separado do Bergman, mas eles estavam fazendo um filme juntos e eu acho que eles estavam em casa diferentes, uma do lado da outra. E aí ela estava comendo pão com geleia e ela fala que da janela da sala dela para ver o que ela estava fazendo. Daí ela sacou que ela estava sendo observada pela janela e a galera da produção ficava em cima, tipo, “Ah, você não pode engordar”. Então ela descreve que ela estava comendo pão com geleia e ela pensou assim, “Só porque eu estou sendo observada e tem um monte de gente querendo regular o meu peso, eu vou comer mais porque eu quero!”. Tipo assim, HAHAHAHA, eu achei muito curioso porque eu lembro, não era exatamente assim, mas a lembrança que eu tenho disso é às vezes quando eu quero mais e eu fico pensando, “Será que eu devo?”, então eu lembro, “Não, é porque eu quero.”. No livro é muito curioso porque ela meio que faz isso para provocar mesmo, é porque ela quer e é ela que manda no próprio desejo.
E depois disso também, todas as vezes que eu comia torrada com geleia, a torrada com geleia nunca mais foi a mesma…
[Thiago Lee] Infelizmente a primeira temporada do “A História Além da História” termina aqui.
Eu gostaria de agradecer a todas as pessoas que aceitaram ser entrevistadas e a todo mundo que ouviu até aqui. Se você gostou dos episódios, mostre para um amigo, para uma amiga, comente nas redes sociais e se possível nos apoie em catarse.me/curtaficcao, para que possamos viabilizar uma segunda temporada em breve.
Um abraço e meu muito obrigado a todos vocês.
[Thiago Lee] A “A História Além da História” é uma produção do Curta Ficção. Eu sou o Thiago Lee, roteirista e editor.
As informações dos livros citados e créditos de trilha sonora podem ser encontrados no post do episódio.
Arte de capa por Johnatan Marques e transcrição do episódio por Ton Borges.
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Até a próxima.