Transcrição referente ao episódio S01E04 do A história além da história: O Dia do Curinga, que pode ser acessado clicando neste link.
Transcrição por Ton Borges
[Vinheta de Abertura]
[Convidado] Cada uma das cartas cria uma frase e o Curinga ordena essas cartas e essas frases e isso forma algum tipo de oráculo. Aí tem “O destino é uma couve-flor, que cresce por igual em todas as direções”, eu acho que isso é genial, HAHAHAHA. Pelo menos assim, é uma besteira realmente a gente está sempre vivendo essas bifurcações, trifurcações, “tetrafurcações”, sei lá, e cada opção que a gente faz, a gente não tem a menor noção de onde elas vão terminar.
A questão da pandemia, por exemplo, uma das coisas que eu acho que faz ela ser tão dolorosa, para muitas pessoas essa questão é “a impotência”. A pandemia em si é uma coisa sobre a qual a gente não tem gerência nenhuma. Eu estou preocupado com as pessoas da minha família, mas o máximo que eu posso fazer é telefonar para elas e brigar, porém ter algum tipo de controle realmente eu não tenho. Então é uma coisa também nesse sentido de abrir mão, de saber que nós não controlamos todos “os ramos da couve-flor”, a gente consegue no máximo controlar um floretezinho lá no final, que é uma coisa mais imediata.
[Thiago Lee] Uma boa história não termina no ponto final, ela continua na vida de cada um de nós.
Eu tive uma conversa muito bacana com o professor, e meu xará, Thiago Ambrósio Lage sobre um livro recheado de discussões filosóficas, e que o ajudou a tomar algumas das decisões mais difíceis de sua vida.
Eu sou o Thiago Lee e essa é a História Além da História.
[Thiago Ambrósio Lage] Bom, eu sou o Thiago Ambrósio Lage, eu moro em Palmas, mas sou mineiro, já morei um tempo em Pernambuco, em Recife, sou professor e escritor.
Então, o livro que eu escolhi é O Dia do Curinga, o autor é um norueguês, o Jostein Gaarder, ele é o mesmo autor do Mundo de Sofia, ele é mais famoso por causa desse livro. O Dia do Curinga é um livro que me marcou porque eu li ele muito novo, li no meio da adolescência, eu devia ter uns 14 anos mais ou menos, eu cheguei a reler ele mais tarde e isso para mim é muito raro, dificilmente releio algum livro ou eu vejo um filme mais de uma vez, foi um livro que me marcou a ponto de eu querer reler alguns anos depois, eu já tinha 20 ou 21 anos mais ou menos quando li pela segunda vez, e eu acho que eu li pela terceira vez, mas não me lembro.
Ele marcou porque o Jostein Gaarder é filósofo, tem essa história do Mundo de Sofia que é o romance da história da filosofia e o Mundo de Sofia eu acho ele meio “chatola”, mas no O Dia do Curinga tem bastante coisa de filosofia no sentido de ter alguns personagens e algumas coisas dentro do livro que tem essa postura mais questionadora perante a vida, o universo e tudo mais. Não sei até que ponto posso falar coisas específicas da história, porque hoje em dia tem essa cultura anti-spoiler, mas dentro do livro tem o próprio Curinga, tem essa analogia e essa alegoria do baralho do Curinga e o Curinga é uma carta que não tem uma função definida e pré-estabelecida no baralho. Por meio desse tipo de analogia, ele vai conseguindo costurar ali uma história sobre essas pessoas que não se conformam tanto com as normas, as pessoas que questionam e tem as outras cartas do baralho, que são pessoas que estão “mais ajustadas”, por assim dizer, mas que no fim das contas esses outsiders, esses visionários, eles acabam trazendo mudanças para a sociedade.
E aí é claro que eu me identifiquei com o Curinga, adolescente querendo ser diferentão e tudo mais. Mas tem vários outros elementos, tem uma road trip no livro, uma viagem de carro que atravessa a Europa inteira e isso, poxa, eu tinha 14 anos e tinha o sonho de viajar, de conhecer o mundo, então eu ficava encantado, tipo, “Nossa, o cara pegou um carro e foi da Noruega até a Grécia!”, e o maior sonho da minha vida era conhecer a Grécia. Tem esses outros elementos também que me cativaram bastante.
[Thiago Lee] Existem livros, filmes, músicas ou até mesmo qualquer outra obra de arte mexem com a gente de uma maneira que nem nós mesmos conseguimos entender perfeitamente. E foi isso que eu percebi conversando com Thiago. Conforme nossa conversa progredia, ele ia redescobrindo novas maneiras que O Dia do Curinga impactou a vida dele.
[Thiago Ambrósio Lage] Se eu não tivesse lido ele, eu acho que a minha adolescência teria sido talvez um pouco mais triste, porque realmente é um livro muito para cima. Eu como leitor e como consumidor de narrativas, vou colocar dessa forma, isso se aplica a outras mídias também, eu sempre penso em um tripé que uma obra precisa ter para me engajar bem: ela tem que me divertir, tem que me emocionar e tem que me fazer pensar. Não precisa ser as três coisas, às vezes a gente quer uma coisa só para dar risada, às vezes a gente encara um drama que você vai sofrer, vai se emocionar e às vezes a gente pega uma coisa mais cabeçuda e quer refletir sobre aquilo.
Eu acho que O Dia do Curinga foi uma das primeiras obras que eu li que conseguiu acertar os três pontos. Assim, tem situações muito engraçadas, para mim, lógico, tem situações dramáticas porque esse pai e esse filho pegaram o carro na Noruega e estão indo pra Grécia, porque a mãe do garoto abandonou ele e foi para a Grécia. Então esse garoto foi abandonado pela mãe, então tem esse drama, né, e tem um drama também na história da ilha, que é a história de um náufrago, eu adoro histórias de náufrago, independente do cenário, pode ser uma pessoa numa nave meio Perdido em Marte, eu gosto muito desse tipo de história, porque eu acho que talvez pelo fato de eu ser mais introvertido ou ser mais solitário. Então assim, tem essas questões dramáticas e tem essas reflexões que eu acho que o Jostein Gaarder consegue colocar de uma forma bem equilibrada, que é um livro que você consegue ler também e ter uma leitura só superficial dele, só de entretenimento, “Ah, é a ilha mágica, a viagem da Europa, beleza, é legal”, mas você consegue ler e parar para pensar. Eu acho que tem esse tripé.
Então sem esse livro, talvez eu não tivesse tido a oportunidade de ter com isso naquela idade e não teria apreciado também outras obras depois ou alguma coisa assim, ou talvez tivesse demorado mais.
[Thiago Ambrósio Lage] Sabe aquela gaveta da escrivaninha que você coloca tudo o que você não tem onde colocar? Aquela gaveta da bagunça? A minha cabeça é mais ou menos desse jeito.
Tem uma coisa no livro que eu acho bem interessante também é que tem uma certa construção de mundo elaborada dentro dessa ilha. O livro se chama O Dia do Curinga — olha só que coisa doida, HAHAHAHA, vão achar que eu sou maluco — porque existe o Dia do Curinga na ilha, porque no processo de construção de mundo, eles têm um calendário e esse calendário é baseado nas cartas do baralho e cada semana do ano, ela vai ser regida por uma carta. A gente vai ter 52 semanas, então 52 vezes 7, dá 364 dias, o ano tem 365, então tem esse dia extra que é o Dia do Curinga. Mas é porque eles têm o Jogo do Curinga que acontece a cada quatro anos, porque a cada ano vai ser regido por um naipe, uma coisa assim. Então obviamente, todo o ano bissexto, todo 29 de fevereiro, é meu dia do Curinga pessoal, apesar de no livro o ano começar no Ano Novo astrológico.
Isso acaba casando com várias obsessões minhas sobre o calendário, essas coisas, e o ano bissexto tem uma história na minha família também. Praticamente todo mundo nasceu em ano bissexto, muitas mortes acontecem no ano bissexto, então tem essas “situações”. A pandemia começou em um ano bissexto, que foi um comentário que a minha mãe fez em um dos nossos últimos telefonemas, que o ano bissexto acabou, então agora talvez coisas boas vão acontecer. É engraçado que eu não sou muito supersticioso, nem a minha mãe, mas o negócio do ano bissexto ela sempre comenta.
E querendo ou não, aí eu não sei se tem viés confirmação, se não tem, e também se tiver, paciência, né, a gente não precisa ser 100% racional ou cético o tempo todo não, sabe? Às vezes é divertido pensar um pouco nessa magia do mundo e isso é uma coisa que o tem no livro também, essa questão do “maravilhamento” dessa história, dessa ilha fantástica, junto com essa road trip, então tem essa questão de ser racional, de ser cético, de não ser.
Eu vou contar a história do livro e foda-se.
É sobre um menino que acha um livreto no meio da viagem e o livreto tem história dessa ilha fantástica. Então chega a ter realmente um momento no livro em que essa história dessa ilha para o menino é real e não casa muito com o mundo real. Tem um conflito dele com o pai dele a partir de determinado momento por causa disso, dessa história que está ali dentro, só que fica aquela coisa do maravilhamento, de um mundo muito concreto, e no final o pai do menino acha que ele está ficando louco, mas é alguma uma coisa nesse caminho, dessa relação com outras obras. Aí tem questão de road trip, de histórias de náufrago, a mãe do menino foge para a Grécia para se encontrar.
E esse outro filme que eu tinha visto o mais novo, Shirley Valentine, é também sobre uma mulher que vai para a Grécia para se encontrar e talvez eu tenha ido para a Grécia para me encontrar também. Vai saber o que é que se passa na cabeça da pessoa, o que fica no subconsciente no decorrer dos anos, né?
Mas essa pulsão também de correr o mundo atrás de si próprio é uma imagem que eu acho muito bonita.
[Thiago Lee] Thiago me relatou que leu o livro no auge da adolescência, em meados de 1996. Foi interessante ouvir sobre como a relação dele com a literatura era muito diferente de como nós, como coletivo, nos relacionamos com a literatura hoje em dia, em pleno século XXI.
[Thiago Ambrósio Lage] Porque nessa época não existia internet, HAHAHAHA, então vamos situar a história, né. Não existia internet, eu estudava meio horário e eu passava o resto do tempo, fazia alguma outra coisa em casa, algum serviço doméstico, em casa todo mundo ajudava a manter a casa, então tirando esses momentos, eu estava com a cara enfiada em um livro. Inclusive durante as aulas, ia para a escola, abria um livro debaixo da carteira e ficava lendo ao invés de prestar atenção, é um mistério como eu consegui sobreviver na escola. Eu tinha essa experiência de leitura sempre muito imersiva, que era uma coisa que eu preenchia todo meu tempo livre com isso.
Você falando de livro, de mãe e tal, eu lembro de uma coleção antiga que ela tinha de José Mauro Vasconcelos, como Coração de Vidro, umas coisas assim que eu tinha lido quando era mais novo, aí eu lembro onde ficava a estante, no fundo do armário e tal. Agora O Dia do Curinga não, já era uma outra época, rodava muito livro, a gente teve a época do livro espírita, aquela época do romance espírita nos anos 90, aí teve a fase do Paulo Coelho também, tinha os livros dele tudo, mas eu lembro muito claro do papel e tal. Então quando eu fui procurar uma edição para comprar, eu procurei da capa antiga, porque depois ele foi reeditado com uma capa nova, mas eu queria a capa antiga que tinha uma cartinha de baralho na frente.
Tem outras coisas também, porque eu sempre sou muito obcecado com baralho, eu já estudei Tarot, e um dos personagens do livro coleciona curingas, porque muitas vezes o pessoal compra o baralho, o curinga não tem função de em alguns jogos, aí já é aquela coisa né, porque o Curinga ali ele é o filósofo, ele não tem função, mas ele é importante. É sempre essa discussão assim.
Uma coisa que eu gosto é que esse livro tem várias camadas. Você consegue ler de várias formas, eu pelo menos consegui ler ele e tive um entendimento com 14 anos, de novo com 20 e tive outro entendimento e hoje quando eu penso na história, eu tenho um entendimento totalmente diferente. Mas esse personagem colecionava curingas, então às vezes ele comprava um baralho, tirava o Curinga para guardar e entregava as cartas para outra pessoa ou então se ele passava e tinha alguém jogando cartas, ele pedia o Curinga.
E tem uma amiga minha, trocentos anos depois, que eu conheci em Recife quando fui morar lá em 2010, que ela colecionava curingas por causa do livro. Aí eu achei bem interessante essa coincidência também. Mas tem a cartinha e tal na capa e eu comprei a mesma edição por causa disso.
[Thiago Ambrósio Lage] Pra mim naquela época, a Noruega, a Grécia e a Terra-Média era tudo a mesma coisa, era tudo muito distante, tudo muito longínquo, meu mundo era o quê? Belo Horizonte, meus avós em dois interiores de Minas e algumas cidades do litoral do Espírito Santo. Meu repertório geográfico era bem limitado. Também eu não tinha grana, viajava com a família e isso até a faculdade. Viajar era difícil, era complicado e era muito concreto. Eu fico batendo muito nessa tecla de um mundo pré internet, mas é porque a gente tem até um dificuldade de visualizar, porque quando eu vim para Palmas, por exemplo, não tinha o Google Maps do jeito que a gente tem hoje. Eu procurava na internet e eu não consegui reservar um hotel aqui em Palmas. Isso foi em 2005, então é super recente, se você for parar para pensar, e em 95, o conhecimento que a gente era muito limitado. Se queria saber alguma coisa sobre outro país, tinha o verbete lá na enciclopédia com duas ou três páginas com sorte, se fosse um país mais visado.
Então assim, eu nem costumava viajar e falava até que não gostava, mas depois quando eu fui envelhecendo, fui ganhando dinheiro e acabei tendo que viajar porque eu estou de estudo, por questão de trabalho, aí eu fui habituando. Quando estava com 20 e poucos anos, eu já tinha saído da faculdade, não sei se já tinha vindo para cá, mas uma vez onde viajei e eu fiquei em um hostel por acaso com duas amigas. Aí eu falei assim, “Cara, então que quer dizer que tem como eu viajar sem gastar o preço de um carro a cada viagem”, foi um hostel em Ouro Preto que eu fiquei com essas duas amigas. Aí depois eu tive que fazer uma viagem para Natal por causa de um congresso, então eu tentei esse negócio de hostel de novo e aí eu fui aprendendo os esquemas de viajar sem gastar tanto dinheiro. Aí realmente eu comecei a viajar com muita frequência e a Grécia especificamente, eu já tinha uma obsessão anterior, desde muito novo, era alucinado com mitologia grega e com história antiga.
Um dia desses eu estava vendo esse filme sobre uma mulher que larga o marido dela e foge para a Grécia, tinha visto esse filme acho que com 11 anos de idade e já estava louco que eu queria ir para lá. Depois de velho, acabou que eu consegui ir, tipo, juntei uma grana e tal, e fui realizar o grande sonho da minha vida e fui para lá. E assim que eu puder e eu tiver dinheiro e tiver vacina, não sei se as pessoas do futuro vão entender a situação que a gente está passando em 2021, mas eu gostaria muito de voltar e até de ficar mais tempo para conhecer mais lugares lá.
[Thiago Lee] Como já deve ter ficado bastante claro, a grande força dos livros de Jostein Gaarder, vem de seus aspectos filosóficos e da grande carga emocional de suas histórias. E por mais fantasiosa que o livro possa parecer, a boa ficção consegue relacionar esses elementos fantásticos com as nossas vidas.
[Thiago Ambrósio Lage] Tem vários momentos da minha vida que se relacionam um pouco com isso. Tem uma sociedade estabelecida ali, porque o livro tem uma história paralela, ele tem uma história dessa viagem de carro do pai com o filho que atravessa a Europa e ao mesmo tempo intercalando a história de uma ilha mágica, onde as cartas do baralho ganharam vida. Dentro dessa ilha, é igual eu comentei, cada carta tem a sua função pré-estabelecida e o Curinga é sempre um agente de mudança, ele sempre traz ideias novas, essa coisa de ter sempre uma nova maneira de fazer alguma coisa.
Então eu acho que sempre que eu estou nesses momentos que eu preciso pensar, com o perdão da expressão que está super desgastada, o “pensar fora da caixa”, é um pouco nesse sentido do Curinga, de você ver que tem uma ordem estabelecida ali, mas que você pode trazer novas maneiras de encarar velhas questões.
Isso tem muito a ver comigo na vida inteira, principalmente por questões de criatividade, facilidade de resolver problemas e depois isso acabou afetando também minha escolha profissional, eu sou engenheiro de formação e Engenharia está relacionado muito com a resolução de problemas e quase sempre você tem que ter é uma criatividade dentro dos de limites estabelecidos.
Eu acho que seria uma coisa meio nesse sentido, assim como essa questão da adolescência e realmente tem muito essa questão de identificação, de pertencimento e de não pertencimento, que eu acho que tem essa meio que inadequação do adolescente também, “Nossa, eu sou diferente da minha família”, delírios ou desejos de ser o único e de ser especial. Uma coisa engraçada no livro é que tem um jogo dentro do livro, um evento que acontece nessa ilha e é engraçado porque eu sei frases de cor até hoje, então às vezes é um momento ou outro da vida eu acabo lembrando de algumas dessas frases. Nem todas fazem sentido, mas é uma coisa muito lúdica do livro, é bem interessante.
“Quem quer entender o destino, tem que sobreviver a ele” essa eu acho fenomenal. Aí tem outra boa que é: “Criaturas são belas, mas todas perderam a razão, exceto uma. Só o curinga do jogo não se deixa iludir”, essa é muito profética, porque o Curinga se mostra como uma pessoa lúcida numa ilha onde todas as outras cartas são mostradas de uma forma idiotizada.
E tem uma frase que não é do Curinga, mas que eu lembro muito do livro que eu acho ela muito legal, que é de uma carta de ouros, eu não lembro se é o 3, o 7 ou o 9, mas é uma carta de ouros. Eu vou contar a história inteira do livro, né? HAHAHAHA. O livro trata muito também desse despertar da consciência, que eu acho que deve ser alguma coisa dessa consciência filosófica, deve ter uma raiz teórica filosófica mais profunda que me escapa, porque realmente eu não sou estudioso da área. Mas uma dessas cartas ouros se percebe como um pouco limitada intelectualmente, um pouco “idiota”, aí ela fala que “Eu gostaria tanto de pensar um pensamento que fosse tão difícil que eu não conseguisse pensá-lo. Mas eu não consigo.”, e ela cai em prantos, HAHAHAHA.
Então assim, esse tipo paradoxo, esse tipo de brincadeira e tal, eu acho que tem muito a ver com a forma como encara a vida mesmo. Eu já fiz alguns amigos meus, já fiz ex-namorados meu lerem o livro já. Eu falei assim, “Você quer me entender? Então lê esse livro aqui”, inclusive teve uma vez que eu emprestei e a pessoa não leu e eu escondi o livro depois só de raiva para travar uma DR também. Coisas de pessoas extremamente maduras, né.
[Thiago Lee] Ah, vocês se lembram do que Thiago falou lá no comecinho, sobre o destino ser como uma couve-flor? Ele fala um pouco mais sobre isso agora.
[Thiago Ambrósio Lage] Essa questão da “couve-flor”, do destino ser como uma couve-flor que cresce igualmente em todas as direções, eu passei por uma escolha muito determinante para o meu futuro quando eu tinha 15 anos.
Porque eu fui fazer escola técnica, tinha duas escolas técnicas muito boas em Belo Horizonte, e tinha um processo seletivo de algumas cidades que a gente chama de “Vestibulinho”, lá eles chamam só de seleção mesmo. Nele, eu acabei sendo aprovado nas duas escolas e eu escolhi, ir para uma delas por “n” razões.
Só que o meu primeiro ano lá foi muito complicado, porque eu sempre pensava em como meu ano, como a minha vida, seria diferente se eu tivesse ido para outra escola, porque no fim das contas foi uma decisão completamente individual. Meus pais me deram essa liberdade de optar entre as duas escolas, porque eles sabiam que eu teria consciência também de fazer uma opção mais racional. Só que com o tempo, eu percebi duas coisas: Primeiro, que eu ir para a escola A ou B, eu não faria com que o meu primeiro ano fosse diferente, eu faria com que o resto da minha vida fosse diferente, porque eu iria conhecer outras pessoas, ter outros amigos, ter outras experiências, outras vivências. Depois disso, pelo resto da vida a gente sempre faz escolhas, na vida profissional, na vida pessoal, na vida afetiva, etc, mas em segundo, eu entendi que toda escolha traz dentro de si um arrependimento.
Então às vezes não adianta muito você queimar muita pestana. Se você escolher o A, você vai pensar no B, se escolher B, você vai pensar no A. Tem várias escolhas que passaram a ser menos dolorosas à medida que eu entendi isso.
Tipo, quando eu vim pra cá, por exemplo. Eu vim para Palmas por questão profissional, por isso mudei pra cá, mas poderia ter mudado para outra cidade, eu poderia ter continuado em Belo Horizonte. No fim das contas, o que seria da minha vida iria ser um estado muito mais interno do que eu estar aqui ou estar lá. Da mesma forma depois, quando eu fui fazer meu doutorado em Recife, eu pensei em ir para outras cidades, eu cheguei a ver processo seletivo e escolhi ir para lá e fui feliz. Se eu tivesse ido para outra cidade, talvez eu tivesse sido feliz também, talvez tivesse sido mais feliz ou menos feliz. Mas felicidade é uma coisa quantitativa? Não sei se é quantitativa. Eu teria tido outras experiências, mas eu tomei esse ramo da couve-flor, então não tem como eu ponderar. Eu vim para essa direção, se existir uma realidade alternativa, paralela, alguma coisa assim, nessa hora o Thiago desse outro ramo da couve-flor, às vezes está dando uma entrevista também, às vezes está morto, às vezes está entrevistando alguém, não dá para saber, às vezes se mudou para a Grécia.
Enfim, eu acho que seria mais nesse sentido de trazer um pouco de paz dentro dessa diversidade e dessa multiplicidade de opções. Claro que em várias situações da minha vida que “eu” tenho escolhas, porque tem outras pessoas que têm outras vivências e essas pessoas têm menos escolhas e têm menos opções, eu já passei por algumas situações na vida em que eu tinha menos escolhas e menos opções também. Então tem esse outro aspecto aí.
Inclusive tenho uma ex-aluna que é minha colega hoje, que ela lembra que nosso primeiro diálogo foi esse, que eu estava dando aula à noite e ela falou que me procurou antes da aula, porque ela tinha que ir embora para fazer um relatório ou alguma coisa uma coisa assim, eu falei ,“Não, pode ir, não tem problema, a vida é feita de escolhas, você faz e arca com as consequências”, escrotinho, né? HAHAHAHA. No primeiro ou segundo ano dando aula eu achava que eu tinha que botar banca, porque eu tinha quase a mesma idade que os alunos. Até hoje ela repete isso e fala que foi importante. Eu falo, “Pois é, deve ter surtido algum efeito, já que hoje a nossa mesa fica uma do lado da outra na fila, HAHAHAHA.”.
Mas esse nível do arrependimento é uma coisa que realmente, como eu tenho certeza que eu vou me arrepender, as escolhas são menos dolorosas, porque eu sei que vai doer de todo jeito.
[Thiago Lee] Para finalizar, a nossa conversa foi tão envolvente que acabou indo para um lado mais pessoal, e, para minha surpresa, Thiago também conseguiu relacionar o livro a uma experiência pessoal minha.
[Thiago Ambrósio Lage] Para você ver, você emigrou também! Emigrar é uma escolha muito muito forte. Tem essa coisa da gente ter coragem, que é aquele caso do musical Wicked na hora que a Elphaba canta “I think I’ll try defying gravity”, ou seja, você tem que fechar o olho e pular. Então tem um pouco disso.
E tem escolhas que são menos reversíveis, mas é muito difícil a gente ter uma escolha totalmente reversível. Eu acho que tem essa coisa também que eu tento levar em consideração, é que muita coisa a gente tem como contornar, a gente tem como dar um jeito, a gente pode mudar de opinião. Só que quanto mais novo a gente é, mais definitivo a gente acha que são as coisas, mas a gente tem muito mais tempo para consertar e depois de velho, você não tem mais tanto espaço de manobra, mas você vai ficando mais sereno, porque você vê também que não é o fim do mundo. Mas enfim…
[Thiago Lee] “A História Além da História” é uma produção do Curta Ficção. Eu sou o Thiago Lee, roteirista e editor.
As informações dos livros citados e créditos de trilha sonora podem ser encontrados no post do episódio.
Arte de capa por Johnatan Marques e transcrição do episódio por Ton Borges.
Até a próxima.