Transcrição referente ao episódio S01E03 do A história além da história: A Moça Tecelã, que pode ser acessado clicando neste link.

Transcrição por Ton Borges


[Vinheta de Abertura]

[Convidada] Meus 17 anos foram muito “complicados”, vamos dizer assim, né. Foi a época em que meus pais se separaram, eu estava fazendo vestibular e no meio disso tudo eu tinha um relacionamento com uma pessoa, mas já era um relacionamento abusivo. E o conto que eu acabei escolhendo, que foi um conto que mudou a minha vida, foi A Moça Tecelã da Marina Colasanti.

Foi uma epifania, foi assim, tipo, eu fechei o livro e falei, “Eu não quero isso para minha vida. Eu não quero ser essa pessoa que pode ser muito melhor do que isso, mas fica se diminuindo para caber no mundo de alguém”. Aí eu terminei na mesma semana. HAHAHAHA, tipo, eu li o conto e terminei na mesma semana.

[Thiago Lee] Uma boa história não termina no ponto final, ela continua na vida de cada um de nós. 

Eu entrevistei a professora e escritora Simone Paulino que relatou como um simples conto a fez terminar um relacionamento abusivo e como toda sua vida se transformou dali para frente.

Eu sou o Thiago Lee e essa é A História Além da História.

[Simone Paulino] Meu nome é Simone Paulino e eu sou professora da rede municipal do Rio de Janeiro.

Esse conto da Marina Colasanti fala muito sobre a questão do poder feminino. A gente tem uma protagonista, porque a Marina Colasanti trabalha muito com o maravilhoso simbólico, então você tem que ver os símbolos que tem nessas narrativas, e nesse conto a autora trabalha com uma mulher que tem o poder de, ao tecer, ela cria a própria realidade. Então quando ela quer que tenha sol, ela vai lá, tece e aí tem sol, quando ela quer que tenha chuva, ela vai lá, tece e vem a chuva. Aí chega um dia em que ela se sente sozinha e decide tecer para ela um marido, mas aí ela começa a ser muito infeliz porque o marido começa a se utilizar do poder que ela tem. Então o poder que antes era dela e que ela usava para controlar a natureza, vamos dizer assim, para fazer aquele mundo girar, passa a ser do homem porque ele o tempo todo fica pedindo para ela tecer as coisas. É basicamente isso.

O primeiro contato que tive com a Marina Colasanti eu era muito pequena e foi com um livro chamado A Mão na Massa, que era literalmente a mão da doceira que tinha caído na massa e aquilo me deixou espantada. Depois eu li Uma Ideia Toda Azul e aí eu já comecei a gostar um pouco mais da Marina Colasanti porque eu entendi mais. Aí, aos 17 ou 18 anos, eu li o Doze Reis e a Moça no Labirinto do Vento que tem o conto A Moça Tecelã.

Quando eu li esse conto, foi um conto que me tocou muito porque eu consegui me ver como a moça, entendeu?

[Thiago Lee] Simone me contou um pouco sobre o tal relacionamento em que ele estava quando leu A Moça Tecelã.

[Simone Paulino] Meu namorado na época, tipo, não fazia faculdade, não trabalhava, não fazia nada e financeiramente ele, enfim, não tinha muitos recursos, eu tinha mais recursos que ele, tinha todas essas questões, eu estudava em escola particular e tal, e ele o tempo todo ficava tentando me botar para baixo, “Ah, mas você tá fazendo faculdade disso para quê?”, “Ah, mas você vai trabalhar com isso?”, aí na época eu queria trocar para Letras e ele “Ah, mas agora você vai trocar?”, e a ficava o tempo inteiro me botando para baixo, falando que estava muito gorda, que a fisioterapia não estava adiantando e que eu ia acabar ficando manca, porque eu tive uma fratura muito séria no tornozelo. 

Então era tempo todo ele me botando para baixo e aí quando eu li esse texto, eu vi assim, porque, caramba, eu era uma das melhores alunas da minha turma, todo mundo falava que eu era inteligente, que eu era engraçada, mas ele o tempo todo me botando para baixo e tudo na minha vida estava girando em torno dele. Daí eu percebi e falei, “Caramba, eu sou a moça tecelã! ”.

Eu estou deixando o meu poder de lado, eu estou deixando de crescer para viver à sombra de uma pessoa que é menor que eu”, esse foi o momento em que deu aquele estalo tipo, “eu não quero, não posso mais continuar nessa relação, porque eu não vou conseguir crescer aqui”. Mas assim, foi muito bom eu ter feito isso. Foi uma epifania mesmo, aquela iluminação, sabe?

[Simone Paulino] Alguns dizem que esse conto é uma metáfora do divórcio, também pode ser entendido da forma, né, porque o maravilhoso simbólico acaba abrindo brecha para muitas interpretações. Mas eu vejo mais como um “reempoderamento”: Você vive pela família, você vive pelo seu marido, você vive orbitando o seu namorado, e você esquece o poder que você tinha antes deles, da vida que você tinha antes, logo você acha não vai sobreviver se não tiver uma pessoa do seu lado. Eu acho que esse conto, para mim , é um dos contos mais emblemáticos dela e realmente foi o que deu uma mudança muito grande na minha vida, que eu achava assim, “Ah, eu estou apaixonada por ele, eu nunca vou largar”, enfim. A minha mãe reclamava, meu pai reclamava, minha irmã reclamava, todo mundo reclamava porque percebia que aquilo não me fazia bem, mas eu precisava perceber aquilo e eu só consegui perceber aquilo depois que eu li esse conto. 

No começo do conto tem a frase que fala, “Tecer era tudo o que fazia. Tecer era tudo o que queria fazer. ” e de fato era! Era o que ela sabia fazer, era o poder que ela tinha. E aí, quando chega o marido, ele começa a pedir um monte de coisa para ela e ela repete a mesma frase, “Tecer era tudo o que fazia. Tecer era tudo o que queria fazer. ”, mas era ela que queria fazer e aí eu percebi, “Caramba, eu estou fazendo a mesma coisa!”. 

[Simone Paulino] A minha mãe é professora…

[Thiago Lee] Mas a história de Simone não começa nesse momento, aos 17 anos de idade. Para ela chegar nesse ponto, a gente precisa entender muita coisa que aconteceu antes mesmo de seu nascimento.

[Simone Paulino] … e a minha mãe não veio de uma família com um poder aquisitivo e essas coisas, ela foi a primeira a se formar na família dela. Meu avô sempre falava para ela que o maior legado que ele podia deixar para ela era o ensino.

Então , meu avô não teve faculdade e essas coisas, minha avó é semianalfabeta também, por parte de mãe, por isso minha mãe sempre teve muito essa coisa com conhecimento, com o estudo, de ler, ela sempre gostou muito disso e ela passou muito isso para mim e para minha irmã. A gente cresceu não só lendo, mas também ouvindo Chico Buarque, a primeira peça que eu vi na minha vida foi Saltimbancos dele, ou seja, a minha mãe ela tentou oportunizar de nós termos toda uma bagagem cultural desde cedo, tudo que ela não pôde ter na infância e na adolescência dela, ela tentou fazer com que nós tivéssemos.

Legião Urbana eu também conheci muito cedo, através de Eduardo e Mônica, inclusive eu lembro da minha mãe sentada, ela colocou disco e aí ela falou assim, “Ouve essa música que conta uma história”, e aí ela foi falando, “Tá vendo?.. Ah, ela é mais velha que ele…”, ela pontuando a história para a gente, fazendo uma narrativa com a gente. 

Nesse ponto da minha mãe, eu não tenho do que reclamar. A minha mãe foi sempre uma grande incentivadora. Depois eu tive o meu primeiro encontro com Dom Quixote, que foi através da adaptação do Orígenes Lessa, aí depois eu tive contato com meu primeiro clássico mesmo, eu já tinha uns 13 anos, que foi Senhora de José de Alencar, que ainda é um dos meus livros favoritos na verdade. Daí para a frente foi só lendo de tudo, é claro, até Harry Potter, eu também passei por essa fase. 

A minha mãe realmente sempre foi uma grande incentivadora, então ela sempre trazia livros para eu ler, tanto é que a Marina Colasanti eu conheci através da minha mãe, ela trouxe o livro para eu ler. Assim, a minha mãe não só incentivava a gente a ler, como a escrever também. Ela deu um caderno para mim e para minha irmã para que a gente escrevesse poesias, tanto é que o primeiro livro que eu publiquei foi de poesias e foi até um texto bem feminista, que era o Não Somos Rosas.

[Thiago Lee] A Marina Colasanti foi tão importante para Simone, que ela acabou moldando sua carreira em torno dessa autora.

[Simone Paulino] Nos contos da Mariana, em geral, eu acabei percebendo muito desse feminino. Na época, eu fazia Comunicação, acabei trocando para Letras e fiz o meu TCC sobre ela, sobre essa questão desse simbolismo nos contos de fada dela e acabei falando também sobre A Moça Tecelã. Aí eu fiz a pós-graduação e  também falei sobre Marina Colasanti, fiz o mestrado e falei sobre ela, fiz o doutorado e também falei sobre ela HAHAHAHA. 

Realmente ela trata muito bem disso, sabe? Eu tenho um estudo bem grande sobre a obra da Marina, no Rio eu sou uma das especialistas em Marina Colasanti. Então, foi também algo que acabou mudando minha vida não só nesse ponto, porque depois eu comecei a procurar outras obras dela. 

Eu cheguei a entrevistá-la e eu falei sobre essa questão do feminismo nos contos de fada dela e ela falou, “Não tem feminismo nos meus contos de fadas”, mas tem, mesmo sem querer, tem. Mesmo sem intencionalidade, até porque ela mesma se declara feminista e ela fala muito sobre essa temática, então tem um conto também em que o protagonista é masculino, que é o A Mulher Ramada, e ele é um jardineiro que decide fazer para ele uma mulher, daí ele pega um arbusto e começa a podar o que vira ela, mas ele está sempre podando a mulher para que ela sempre esteja no formato que ele quer. Porém, na hora que você para para pensar, você fica, “Caramba, o que ele está fazendo?!”, porque a gente também vê isso nos relacionamentos, tipo, você ser um molde da mulher perfeita. Mas o que é aquela mulher perfeita? É aquela que é moldada pelo homem? São muitas coisas que me fizeram refletir também sobre feminismo, que é outro aspecto que eu estudo que a parte da teoria literária feminista, e ela mostra bastante isso. 

Mesmo através do simbólico, você consegue ver essas coisas, a gente vai pegando e isso vai se misturando com a vida da gente, “Poxa, eu estou me deixando podar? Será que eu estou sendo podada? Qual é o molde que estão me dando? Eu preciso sair desse molde”. Para mim eu acho que toda mulher deveria ler Marina Colasanti. Para os homens, também serve. 

Quando a gente pensa assim, “Ah, feminista é tudo um bando de mal-amada” e etc, porque ainda se tem muito essa ideia, eu vejo na Marina, também agora falando dela como pessoa, já que eu tive o prazer de entrevista-la, de estar com ela, já estive em duas palestras na presença dela comigo na mesa também, fiz um curso também de produção de texto com ela, e então ela não é “mal-amada e não sei o que”. Nossa, ela é casada há anos com Affonso Romano de Sant’Anna, que é um poeta, tanto é que ela fala que demorou a entrar na poesia por causa do marido, para não disputar com ele, tipo, a poesia era o campo do Affonso, mas depois ela começou a escrever poesia, e nos momentos em que eu estive com ela, a maneira que ela fala do Affonso Romano de Sant’Anna é uma maneira muito carinhosa. É o tempo todo assim, “Ah, porque o Affonso leu meu texto e tal” e você vê aquela troca, então tira muito o estigma assim, “Ela escreve textos e contos mais voltados para o feminismo porque ela é mal-amada”. Não é, ela não é mal-amada, ela tem até um casamento em que eles compartilham inclusive os interesses pela literatura, intelectuais, eu acho isso muito interessante também.

Um dos encontros que eu tive com a ela, a minha mãe me fez pagar o mico de falar que no primeiro livro da Marina eu fiquei com medo, porque foi A Mão na Massa, em que a doceira deixava a mão cair dentro da massa e a mão ia para o bolo do rei e se tornava a Mão do Rei, literalmente. Então ela fazia muita essa brincadeira, né, e aí eu fiquei morrendo de medo, “Nossa, uma mão que tem consciência! ”, e aquilo para uma criança, eu tinha uns 10 anos de idade. Foi assim que a minha mãe me apresentou a Marina Colasanti e, enfim, minha mãe me apresentou, mas agora eu já conheço “bem mais” do que ela. 

[Thiago Lee] O relacionamento de Simone com a mãe tem sido um ponto extremamente importante em sua vida. Ela me contou um pouco mais sobre essa relação e também sobre o que ela aprendeu com o passar dos anos, depois de todas as dificuldades que ela enfrentou

[Simone Paulino] A gente teve uma fase muito difícil.

Essa fase em que eu terminei esse relacionamento foi uma fase muito complicada e muito conturbada da minha vida, dos 17 até uns 19 anos de vida. Foi uma fase em que eu acabei também me afastando da minha mãe, mas por outras ocasiões. Agora está melhor.

Assim, a gente não tinha esse diálogo tão aberto mais, entendeu? Então não tinha essa coisa de discutir com ela, de falar com ela o que estava se passando, porque ela via que eu não estava bem, ela me criticava por permanecer nesse relacionamento e ela não suportava ele. Ele chegava e ela até saía, minha irmã também, minha irmã chegou a brigar com ele por minha causa. Foram momentos muito complicados. 

Eu não tinha mais essa abertura com a minha mãe, apesar dela ainda me trazer os livros para eu ler e tudo, a gente já não tinha mais esse diálogo, de eu falar o que estava se passando na minha vida também. Infelizmente ou felizmente eu ainda não cheguei a uma conclusão nesse ponto, foi um processo muito solitário. Foi algo eu comigo mesma… eu comigo mesma não né HAHAHA, eu comigo e o livro ali. 

Esse estalo foi algo muito assim, “Realmente, eu preciso finalizar isso”.

[Simone Paulino] Eu tive outros relacionamentos problemáticos, eu não vou falar que eu não tive outros, mas esse foi o mais problemático, porém eu aprendi um pouco mais sobre os meus limites, o que eu quero, o que eu não quero, o que eu aceito, o que eu não aceito. Tentar não me ver pelos olhos dos outros, de falar que eu estou gorda, pô, na época eu pesava 49 quilos! Como uma pessoa de 49 quilos tá gorda? Eu tenho 1,63m, eu estava até muito magra, enfim, de ficar ouvindo essas coisas e levar para mim. Também de não orbitar e não ficar colocando todas as fichas num relacionamento. Você pode ter um relacionamento, mas tenha uma vida fora disso, você pode crescer fora disso.

Eu acho que se eu não tivesse me deparado com esse conto da Marina Colasanti, talvez eu tivesse realmente terminado a faculdade de Comunicação que eu estava fazendo na época, acabaria não exercendo a profissão, me tornando dona do lar, porque ele realmente não tinha intenções que eu trabalhasse, porque ele era uma pessoa extremamente machista. Provavelmente eu não seria a feminista que eu sou hoje, porque eu sou bem combativa nesse ponto. Enfim, acho eu seria muito diferente do que eu sou hoje, sabe? 

Ou talvez eu tivesse dado um estalo só mais tarde, mas eu teria que correr muito mais atrás…

[Thiago Lee]  A “A História Além da História” é uma produção do Curta Ficção. Eu sou o Thiago Lee, roteirista e editor.

As informações dos livros citados e créditos de trilha sonora podem ser encontrados no post do episódio.

Arte de capa por Johnatan Marques e transcrição do episódio por Ton Borges.

Até a próxima.